O primeiro dia da Crimeia russa chegou em clima de tensão

Os soldados ucranianos na península abandonaram as bases, agora sob controlo russo. Kiev ripostou com a imposição de vistos para os cidadãos russos e abandono da Confederação de Estados Independentes.

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Grupo de comandos pró-russos depois de tomarem a base militar de Novoozerne Filippo Monteforte/AFP

Dezenas de soldados ucranianos abandonavam as bases militares da Crimeia, onde se mantiveram cercados durante as últimas três semanas pelas forças pró-russas que desde então controlam a península no Mar Negro. Com roupa civil, transportavam os uniformes em sacos e saíam ordeiramente, sob o olhar atento dos milicianos armados, dando corpo à capitulação efectiva da Crimeia, desde terça-feira anexada à Rússia.

Logo de manhã, a base naval de Sebastopol, sede da Marinha ucraniana, foi tomada por cerca de 200 membros dos comandos pró-russos. Os soldados ucranianos que se encontravam no seu interior foram obrigados a sair.

Entre eles estava o comandante da Marinha, Sergei Haiduk, que, segundo jornalistas no local, foi levado por agentes dos serviços secretos russos, o FSB. O líder das milícias pró-russas confirmou a detenção de Haiduk e o Ministério da Defesa admitiu desconhecer o seu paradeiro. O comandante foi levado para “interrogatório” por causa da autorização dada na terça-feira aos soldados ucranianos para usarem as armas de fogo, segundo a Kryminform, a agência noticiosa da Crimeia. Haiduk foi nomeado no início do mês para substituir o almirante Denis Berezovski, que jurou lealdade às novas autoridades pró-russas da Crimeia.

O Presidente interino, Oleksander Turchinov, tinha dado um ultimato de três horas às autoridades da Crimeia para libertarem todos os “reféns”, incluindo Haiduk, afirmando estar disposto a tomar as "medidas adequadas" caso o prazo não fosse cumprindo, sem adiantar, contudo, que medidas seriam essas. Mas não há ainda notícia da libertação do chefe da Marinha ucraniana.

Outra base militar de Novoozerne, na parte ocidental da península, foi também alvo de ataque pelas forças pró-russas. O porta-voz do Ministério ucraniano da Defesa, Vladislav Seleznev, disse que a entrada das instalações foi forçada por um tractor e que, de seguida, as milícias cessaram o seu avanço, perante os militares ucranianos armados, que acabaram igualmente por abandonar a base.

Em Kiev, o governo anunciava o envio imediato para a Crimeia do ministro interino da Defesa, Igor Teniuk, e do vice-primeiro-ministro, Vitali Iarema, para “terminar a escalada do conflito”. No entanto, os dois responsáveis foram impedidos de entrar na península, como já tinha avisado o primeiro-ministro regional, Sergei Aksionov.

O rumo da Crimeia parece já ser imparável. Na fachada da assembleia regional, as letras que identificavam o edifício já foram substituídas para dar conta da nova designação. O Governo russo aprovou a subida das pensões de reforma em linha com as prestações praticadas na Rússia e os primeiros passaportes russos para os “novos” cidadãos já foram emitidos, segundo informações do Serviço Federal de Migrações. Até ao fim do mês, os livros escolares vão ser substituídos por manuais russos e novos atlas “actualizados” serão distribuídos pelas escolas, de acordo com a rádio Europa Livre.

A “russificação” da península não deixa grande margem de manobra para o governo de Kiev, que colocou em curso um plano para fazer regressar os militares ucranianos e os seus familiares na Crimeia.

Mas a marcha acelerada das mudanças na península de dois milhões de habitantes tem trazido outros sinais inquietantes. As autoridades da Crimeia têm planos para retirar as terras que têm sido habitadas pela comunidade tártara e utilizá-las para “fins sociais”. Em declarações à agência russa RIA Novosti, o vice-primeiro-ministro, Rustam Temirgaliev, garantiu que o Governo está disponível para realocar outras terras para a comunidade.

Os tártaros – muçulmanos sunitas de origem turca que constituem 15% da população da Crimeia – têm-se mostrado apreensivos com o regresso do território ao domínio de Moscovo. Medidas como a anunciada retirada das terras ecoam os traumas da deportação em massa ordenada por José Estaline, em 1944, em que quase 200 mil tártaros foram enviados para a Ásia Central.

Kiev responde
Perante os desenvolvimentos na Crimeia, a Ucrânia ensaia algumas respostas. Em curso está a nacionalização das empresas públicas ucranianas na Crimeia, como por exemplo a do fornecedor de gás Tchornomornaftogaz, que poderá ser absorvida pelo gigante russo da energia Gazprom. O governo ucraniano pretende, por sua vez, confiscar judicialmente os bens russos, tanto na Ucrânia como no estrangeiro, segundo a AFP.

O principal banco da Ucrânia, o PrivatBank, anunciou esta quarta-feira a suspensão das suas actividades na Crimeia “em virtude da incerteza acerca do estatuto jurídico do sistema bancário da península”. Nenhuma das 377 agências abriu e a decisão irá afectar 790 mil clientes privados e 12 mil empresas, segundo o banco, que emprega 1300 pessoas.

No campo diplomático, o governo de Kiev vai impor um regime de vistos para os cidadãos russos que queiram entrar no país. No Leste da Ucrânia há um grande tráfego entre as duas fronteiras e a decisão poderá não ser bem acolhida. Em conferência de imprensa, o secretário do Conselho Nacional de Segurança e Defesa, Andrei Parubi, apelou também às Nações Unidas para que declare a Crimeia como zona desmilitarizada e que impeça a permanência de forças russas na península. Parubi acusou ainda Moscovo de estar a promover o início de um conflito militar com o intuito de sabotar as eleições presidenciais, marcadas para 25 de Maio.

A Ucrânia anunciou igualmente que vai abandonar a Comunidade de Estados Independentes (CEI) e já prescindiu da presidência rotativa, que detinha até ao fim do ano. O vice-ministro russo dos Negócios Estrangeiros, Vasili Nebenzia, lamentou a decisão, mas afirmou que é “um direito” do país. A Geórgia abandonou a CEI na sequência do conflito militar com a Rússia em 2008. A CEI agrupa 15 antigos Estados da União Soviética, à excepção dos três países bálticos.

Depois do choque e, agora, da fase da aceitação da perda da Crimeia, Kiev terá outros focos de preocupação. A “cedência” da península poderá não ser encarada de ânimo leve pelos ucranianos que apoiaram a revolução da Maidan e os novos governantes terão de assegurar que as ruas permanecem do seu lado, ao mesmo tempo que terão de olhar para o Leste do país, onde não falta quem deseje seguir o exemplo da Crimeia.

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