O futuro radioso

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Cinco anos depois de Valsa com Bashir, Ari Folman regressa com O Congresso - a odisseia surreal de uma actriz em declínio, Robin Wright, que assina um “pacto com o diabo” num futuro onde a realidade cortou amarras. Em discurso directo, o realizador israelita fala da “viagem estranha” que propõe ao espectador.

Ao fim de mais ou menos 50 minutos de projecção, O Congresso abandona a imagem real para passar a ser inteiramente animado. Nesse momento, o espectador na sala perde as referências: o que até aí era uma meditação melancólica sobre a fugacidade da fama e as mudanças tecnológicas que o mundo está a impor ao cinema como o conhecemos transforma-se numa alucinação lisérgica sobre um futuro próximo onde as regras da realidade tal como as conhecemos deixaram de ter efeito. É como se entrássemos em território desconhecido, com algo da inscrição de Dante à entrada do Inferno: abandonai toda a esperança ao atravessar este portal.

Do outro lado da linha telefónica, o realizador e argumentista Ari Folman, 51 anos, diz que sim, que é isso que espera que os espectadores sintam. Depois do triunfo de Valsa com Bashir (2008), o cineasta queria afastar-se o mais possível da “verdade” e da verosimilhança daquela catarse em forma de “documentário animado” das suas próprias experiências no exército israelita, sobretudo durante o infame massacre de Sabra e Chatila em 1982.

A sua escolha? Um romance de ficção científica do escritor polaco Stanislaw Lem (1921-2006), O Congresso Futurológico, publicado em 1971, sobre um futuro onde a realidade é infinitamente mutável e subjectiva. Folman introduz na sátira de Lem sobre uma sociedade em fuga para a frente a odisseia futurista de uma actriz – Robin Wright, interpretando-se a si própria – que aceita ser “digitalizada”, nunca mais trabalhar, e deixar que o estúdio de Hollywood a que vendeu a sua imagem faça o que quiser com o seu avatar digital.

Folman fala ao PÚBLICO de Telavive alguns dias antes de O Congresso chegar às salas portuguesas, um ano depois da estreia em Cannes 2013 na secção Un Certain Regard. Ao contrário de Valsa com Bashir, cujo percurso imparável começou na competição de Cannes 2008 e terminou na nomeação para Óscar de Melhor Filme Estrangeiro, a invulgaridade de O Congresso tem deixado muita gente perplexa – uma primeira metade em imagem real, com um elenco que inclui ainda Harvey Keitel, Danny Huston e Paul Giamatti, e uma segunda metade em animação tradicional que recorda os midnight movies psicadélicos dos 1970x. O cineasta admite: “É como partir numa viagem estranha, numa espécie de montanha russa. Mas se aceitar entrar, tem de se recostar na cadeira e deixar-se levar, confiando que pelo final do filme vai chegar são e salvo onde quer que seja o término, e por muito longe que seja.”

O Congresso combina imagem real e animação de um modo que muito pouca gente tentou antes. E que muito pouca gente vai tentar no futuro... Foi assim tão difícil?

Tanto que ainda nem acredito que consegui fazê-lo! Foi de loucos. Trabalhar com nove estúdios de animação em sete países, conseguir o financiamento, tudo neste filme foi difícil. E não creio que mais alguém vá repetir a experiência.

Por causa dessa loucura?

A loucura é uma metáfora muito simples para exprimir a minha teimosia. O establishment cinematográfico é tão antiquado que é muito difícil conseguir fazer algo diferente. E vivemos numa época onde a forma de arte está a mudar tanto... Penso que em breve os espectadores vão deixar de ir ao cinema ver filmes de autor, porque esses filmes não vão ter acesso aos complexos multi-salas. Vamos ter de os ver em casa, e só vamos poder ir ao cinema ver os filmes de super-heróis. E os actores já podem ser inteiramente digitalizados; as instalações de digitalização que se vêem no filme são verdadeiras, nem eu pensava que já existisse algo do género quando escrevi o guião. A animação por computador é cada vez mais perfeita...

É por isso que a animação de O Congresso tem uma qualidade primitiva, antiquada, como os filmes dos irmãos Fleischer [animadores pioneiros de Hollywood, activos nas décadas de 1920 e 1930 e responsáveis pelos cartoons de Betty Boop]?

A animação é de facto uma homenagem aos irmãos Fleischer – tinham um estilo fantástico, muito artesanal. Comparados com os filmes da Disney o seu traço era muito menos certinho, o que fazia deles os “maus rapazes”, e penso que é isso que ainda hoje torna os seus cartoons muito interessantes. Procurámos canalizar os Fleischer a par dessa nostalgia do cinema antigo, mas a verdade é que, artistica e financeiramente, ser-nos-ia muito difícil conseguir prever o futuro. Não tenho dinheiro para fazer sequer hoje um minuto de animação ao nível da Pixar, acha realmente que vou ser capaz de projectar o que eles vão estar a fazer daqui a 20 anos? Seria como meter um golo na própria baliza. Foi uma solução artística que se tornou numa solução de produção que jogava igualmente bem com o tema do filme.

Como lhe surgiu a ideia de introduzir a história da actriz que vende a sua imagem nos temas do romance de Stanislaw Lem?

Quando comecei a trabalhar no projecto, fui a uma conferência que teve lugar num festival de ficção científica aqui em Telavive, que debatia o motivo pelo qual Lem tinha detestado todas as adaptações que tinham sido feitas dos seus livros – tanto o Solaris de Andrei Tarkovski (1972) como a versão de Steven Soderbergh com George Clooney (2002), e uma série de adaptações polacas [de outros livros]. Percebi que, independentemente do que fizesse com o livro, ele detestá-lo-ia. Por isso encontrava-me numa posição confortável, não tinha de lhe agradar – e senti-me à vontade para me afastar o mais possível do livro. A primeira parte também tem a ver com o tema da identidade do romance... A história da actriz tem qualquer coisa de tragédia grega, é sobre uma mulher que está a envelhecer e a quem o diabo vem propôr um pacto, vem oferecer a juventude eterna, como Dorian Gray. O representante do estúdio é o diabo, mas não diz que a matam se ela não aceitar a oferta; diz que a eliminam dos écrãs, do passado, da história. Que ela deixaria de existir. Ela assina o pacto com o diabo, mas não porque precise de dinheiro para operar o filho – isso aconteceria num filme americano, mas este não é um filme americano. Ela fá-lo porque quer ser jovem para sempre... Mais tarde, quando acabámos o filme, mostrámo-lo aos herdeiros de Lem. E eles acharam que era a adaptação mais fiel jamais feita de um dos seus livros, porque apesar de todas as diferenças o seu espírito estava lá.

Quando pede a uma actriz para se interpretar a si própria, está a obrigá-la a olhar-se ao espelho e entregar-se ao projecto de modo muito mais intenso do que é habitual.

Sim, é verdade, mas o que aconteceu é interessante. Quando propus o filme à Robin, ela aceitou imediatamente. Quando lhe enviei o guião dez meses depois, estava à espera que ela pedisse alterações – mas nunca me pediu para mudar nada, e achei isso intrigante. Começámos a rodagem, tudo correu bem. Quando fomos a Cannes apresentar o filme, fizemos muitas entrevistas em conjunto, e ela passava o tempo a dizer que não tinha nada a ver com a personagem no écrã. Deixou-me usar o seu nome verdadeiro, os seus dois filmes mais conhecidos, A Princesa Prometida e Forrest Gump, e o facto de ser uma mãe solteira com dois filhos; mas fora isso a Robin Wright do filme nada tinha a ver com ela. Isso foi chocante... mas nos intervalos das entrevistas percebi que não era uma brincadeira. A mulher que estava ali ao meu lado não tinha mesmo nada a ver com a mulher que estava no écrã e que eu tinha escrito. O que vemos no écrã é um ideal, e acho que ela tomou a atitude correcta, a fim de ser capaz de representar uma personagem. Foi algo muito corajoso da parte dela.

Já abordou um pouco o assunto, mas a realidade está a ultrapassar a ficção de tal modo que O Congresso pode ser entendido como uma antecipação muito assustadora do futuro...

E é! E isso já estava no livro. Quando escreveu o romance, Stanislaw Lem previu muitas coisas como o iPad, a televisão em 3D – sobretudo, previu que as drogas farmacêuticas teriam o poder de transformar as nossas emoções. Previu que sempre que vivêssemos uma crise iríamos ao médico para ele nos aviar uma receita que nos pusesse a funcionar outra vez. Previu os anti-depressivos, a reality TV e o novo sonho de ser uma estrela instantânea, de podermos ser famosos sem termos de trabalhar para isso. No filme, há essa dimensão de se tomar uma droga para se ser quem se quiser ser; e o que eles querem mesmo é ser famosos.

Ainda se pode ser optimista num tal mundo?

Posso dizer-lhe uma coisa. A tecnofobia não levou a natureza humana a lado nenhum, e talvez um dia as pessoas leiam a sua entrevista e digam, “olhem para este palerma a falar da televisão em 3D, parece aqueles tipos que quando se inventou o cinema sonoro diziam que o cinema ia morrer.” Os meus filhos nasceram nos tempos da Playstation e estão tão à vontade com um joystick como com uma caneta. Acha que daqui a uns anos eles se vão importar que o actor no écrã seja uma versão digital e não de carne e osso?

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