Morreu D. José Policarpo

O actual patriarca emérito de Lisboa tinha 78 anos. Bispos reconhecem nele "uma figura marcante na renovação da Igreja em Portugal". Sempre muito atento à actualidade nacional e internacional, teve também vários momentos polémicos.

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D. José Policarpo recorda que a origem da maçonaria é "canónica", mas é incompatível ser maçon e católico Nuno Ferreira Santos

D. José Policarpo, 78 anos, morreu nesta quarta-feira, segundo adiantou a Rádio Renascença. Foi cardeal-patriarca de Lisboa durante 15 anos.

O actual patriarca emérito de Lisboa morreu na sequência de uma operação a um aneurisma na aorta, num hospital de Lisboa, onde deu entrada depois de se ter sentido mal esta manhã, disse à agência Lusa a irmã mais nova de José Policarpo.

Maria do Céu Policarpo adiantou que o irmão deu entrada no hospital do SAMS, do Sindicato dos Bancários do Sul e Ilhas, na sequência de um aneurisma, e que morreu na sala de operações.

"Os bispos reunidos em Fátima, para fazer o seu retiro anual, receberam a dura notícia do falecimento de D. José da Cruz Policarpo, cardeal patriarca emérito de Lisboa, ao fim desta tarde, provocado por um aneurisma. De manhã, tinha deixado Fátima, numa ambulância, para ser tratado em Lisboa", faz saber a Conferência Episcopal Portuguesa, em comunicado emitido na noite desta quarta-feira.

"Com profunda dor, mas também com grande esperança, os bispos agradecem a Deus a sua vida rica de boas obras, intensamente dedicada ao serviço da Igreja e do mundo, intervindo no campo pastoral, cultural e social com sabedoria e coragem evangélicas. Todos reconhecemos nele uma figura marcante na renovação da Igreja em Portugal, com o seu sábio discernimento dos sinais dos tempos para responder aos desafios dos tempos presentes."

As exéquias serão na próxima sexta-feira pelas 16 horas na Sé de Lisboa, seguindo depois para São Vicente de Fora, o panteão dos Patriarcas.

O Presidente da República já enviou uma mensagem de condolências à família do patriarca emérito de Lisboa e à Igreja Católica portuguesa. "Portugal foi tristemente surpreendido pela notícia da morte do patriarca emérito de Lisboa, D. José da Cruz Policarpo. Todos os portugueses, crentes e não crentes, lamentam a perda de uma personalidade ímpar, que pela lucidez serena e pela luminosa inteligência da sua palavra constituiu, ao longo de décadas, uma das mais importantes referências éticas e espirituais da nossa sociedade", refere a mensagem de condolências de Aníbal Cavaco Silva, divulgada no site da Presidência da República.

Cavaco Silva lembra que D. José Policarpo "dedicou a sua vida à causa da Igreja, sendo um dos principais responsáveis pela concretização, no nosso país, da renovação eclesial iniciada pelo Concílio Ecuménico do Vaticano II" e que "norteou a sua presença na vida pública pelos ideais da tolerância, da autenticidade e da fidelidade aos valores em que acreditava, assumindo o serviço aos outros, em especial aos mais carenciados, com exemplar generosidade e admirável espírito de entrega".

Em declarações à Renascença, o Patriarca D. Manuel Clemente disse, por seu lado, que “mantém-se viva a feliz memória do seu trabalho e do muito que a Igreja de Lisboa e a Igreja em Portugal deve à sua generosidade e à sua lucidez, à sua grande bondade com que exerceu o seu Ministério”.

Momentos polémicos
José da Cruz Policarpo era natural da pequena aldeia do Pego, na freguesia de Alvorninha, concelho das Caldas da Rainha, e acabaria por entrar para o seminário de Santarém. Foi patriarca de Lisboa entre 1998 e 2013.

Sempre muito atento à actualidade nacional e internacional, teve também vários momentos polémicos. Uma das suas declarações, em Janeiro de 2009, criou mal-estar entre comunidade muçulmana. “Cautela com os amores. Pensem duas vezes antes de casar com um muçulmano. Pensem muito seriamente. É meter-se num monte de sarilhos que nem Alá sabe onde é que acabam”, afirmou num debate.

Já Outubro de 2012, num momento de grande contestação social no país, criticou os protestos que se faziam nas ruas: “Estes problemas foram criados ao longo e muito tempo, por nós e por quem nos governou.”

Em Cabo Verde a fazer uma formação para o clero daquele país, o cónego Carlos Paes, pároco de São João de Deus, em Lisboa, e responsável pelas Equipas de Santa Isabel (que acompanham casais recasados), ficou “chocado” com a “notícia inesperada” da morte de D. José Policarpo.

Com três anos de idade de diferença, tinham apenas um de curso o que significou que se foram sempre acompanhando na sua formação e, muitos anos depois, na formação dos futuros padres. “Daí uma amizade que se prolongou pela vida toda”, disse ao PÚBLICO.

Carlos Paes lembra que Policarpo estava em Roma quando se deu o Concílio Vaticano II e acompanhou-o de perto. “Foi uma experiência muito rica. Quando vinha de férias, fazíamos sempre umas tertúlias para conversarmos” sobre as mudanças e desafios que se colocavam à Igreja. “Ele estava em Roma, no coração da viragem que se estava a operar."

Para Carlos Paes, o cardeal emérito é responsável pela qualidade do clero do Patriarcado de Lisboa, uma vez que esteve à frente do seminário dos Olivais muitos anos. “Teve importância para o novo tipo de padres que são os que estão hoje a trabalhar. D. Manuel Clemente [que lhe sucedeu] foi seu discípulo. Foi sempre um homem de cultura que não será esquecido facilmente”, continua o cónego.

“Era uma pessoa que tinha um espírito bastante calmo mas que estava sempre bem disposto e com um sentido de humor muito espontâneo”, recorda ainda, acrescentando que “não tinha aquele estilo clerical considerado negativo". "Era franco e directo e de um trato muito agradável." Era "um homem com a capacidade de ver dentro dos acontecimentos e de projectar uma ideia sempre de forma muito espontânea e lúcida."

O padre Carreira das Neves, um ano mais novo do que D. José Policarpo, seu amigo e colega, nomeadamente como professor, lembra, também em declarações ao PÚBLICO, outras particularidades de D. José: “Era um homem superiormente inteligente, muito dedicado" que aparecia nas igrejas, para ajudar os padres, sem se fazer anunciar “para falar e ajudar a resolver problemas”. “Aparecia quando menos esperavam.”

Quanto a episódios polémicos, recorda um: “Há uns anos, numas conferências na Figueira da Foz, num momento de intervalo, quando pensava que não estava a ser gravado, alguém lhe perguntou sobre a possibilidade de as mulheres serem ordenadas padres. Ele disse que era uma questão em aberto, e que mais cedo ou mais tarde isso acabaria por acontecer. As suas palavras chegaram ao Vaticano, que não gostou nada.”

50 obras publicadas
Também Bruto da Costa, da Comissão Justiça e Paz, conheceu bem o patriarca emérito. “Lidei com ele muitos anos, desde a altura em que ele era bispo auxiliar, e a notícia apanhou-me de surpresa. Em muitas ocasiões colaborei com ele e devo-lhe gestos de amizade pessoal.”

Bruto da Costa sublinha, em particular, “os gestos de diálogo” que Policarpo revelou ao longo da vida, nomeadamente “com o mundo não crente”. “Era um intelectual e respeitado como tal. [A sua morte] é uma grande perda para a Igreja e para a sociedade portuguesa.”

Sobre as polémicas, em alguns momentos, dentro e fora da Igreja, diz que D. José Policarpo “era um homem culto, de uma elevada intelectualidade na forma como fundamentava as suas posições e que sabia que as divergências fazem parte da vida e que a igreja se define como um espaço de diálogo”.

Ordenado padre aos 25 anos, tornou-se bispo aos 42 e, aos 61, coadjutor do Cardeal-Patriarca de Lisboa, com direito a sucessão, mas nunca foi o que gostaria de ter sido: pároco.

Estudou Filosofia e Teologia nos seminários de Santarém, Almada e Olivais, em Lisboa.

Entre 1966 e 1970 viveu na capital italiana, onde se licenciou em Teologia Dogmática em 1968, pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma, com uma tese intitulada “Teologia das Religiões Não-Cristãs”.

Dirigiu durante quase três décadas (1970-1997) a formação dos padres saídos do Seminário dos Olivais. Foi reitor da Universidade Católica de Lisboa durante oito anos, chefiou o projecto da Igreja Católica na TVI e era o braço direito do seu antecessor, o Cardeal-Patriarca D. António Ribeiro, desde 1978, ano em que recebeu a ordenação episcopal como bispo titular de Caliábria.

Ao tomar posse na Sé Patriarcal de Lisboa como arcebispo coadjutor, aproveitou para defender que a Igreja deve "partir para a abertura de novos ritmos pastorais" e declarou-se disposto a entregar à diocese da capital o resto da sua vida.

Protagonista da renovação cultural da Igreja Católica em Portugal, tornou-se patriarca emérito de Lisboa em 2013, tem cerca de cinquenta obras publicadas e é sócio honorário da Academia das Ciências de Lisboa e académico de mérito da Academia Portuguesa de História.

“A Igreja e o País sentirão a sua falta"
As reacções à sua morte sucedem-se. O primeiro-ministro divulgou uma mensagem de pesar. “Foi com enorme pesar que recebi a notícia da morte do Cardeal-Patriarca Emérito de Lisboa, D. José Policarpo. Com uma distintíssima vida eclesiástica, foi um homem de fé, de tolerância, e de serviço à comunidade e à Igreja Católica”, diz a nota de Pedro Passos Coelho enviada às redacções dos órgãos de comunicação social.

“A Igreja e o País sentirão a sua falta na defesa dos valores cristãos, do auxílio aos mais desprotegidos e do diálogo inter-religioso. Foi uma figura marcante no crescimento da Universidade Católica Portuguesa, de que foi Reitor e Magno Chanceler assim como professor dedicado”, acrescenta.

Já o PS, lamentou a morte do patriarca emérito de Lisboa, que recordou como uma "personalidade marcante da Igreja Católica" e "um exemplo de abnegação e de serviço à comunidade".

Numa nota à imprensa, o PS apresenta as condolências à família do antigo cardeal patriarca de Lisboa e à Igreja Católica, recordando José Policarpo como "um homem de profunda cultura e de enorme dedicação aos valores cristãos e ao diálogo inter-religioso".

"Personalidade marcante da Igreja Católica, deixa na memória dos portugueses um exemplo de abnegação e de serviço à comunidade", acrescenta a nota do PS.

À Lusa, o presidente da Comissão da Liberdade Religiosa, Fernando Soares Loja, lembrou o patriarca emérito de Lisboa como um "homem corajoso" que não "pedia licença para dizer o que pensava". "Fica-me a imagem de um homem que era corajoso na afirmação das suas convicções. Era um homem que acreditava, tinha valores, defendia esses valores e não pedia licença para expressar a sua opinião."

O presidente da Comissão de Liberdade Religiosa, que é também vice-presidente da Aliança Evangélica Portuguesa, lembrou as diferenças de opinião que os separavam, mas adiantou que muitas vezes felicitou Policarpo "pela coragem que manifestava ao dizer coisas que não eram politicamente correctas".

Deixa "boas recordações" aos muçulmanos em Portugal, foi a reacção do xeque David Munir. O líder da Comunidade Islâmica de Lisboa recorda D. José Policarpo como "uma pessoa afável, amável" e alguém "muito preocupado com a situação" do país.

"Era um homem sereno, um homem que raras vezes, penso que nunca, se deixava levar por aquilo que eram as modas e os pensamentos dominantes", disse Nuno Brás, bispo auxiliar de Lisboa.

"Era uma pessoa muito exigente em termos daquilo que desejava para a Igreja. Procurava que a Igreja, na missão que desempenhava, fosse muito coerente com os princípios orientadores que deveria ter e que fosse bastante vigorosa na fidelidade a esses princípios", acrescentou o presidente da Cáritas Portuguesa, Eugénio Fonseca.

"Um pouco isolado"
Não foram colegas de seminário mas encontraram-se no Colégio Português, em Roma, para onde vão os consagrados que querem continuar a estudar. Então, no final da década de 1960, início da de 1970, António Janela e José Policarpo estudaram, rezaram e fizeram férias em conjunto. “Não se pode esquecer que D. José era também um homem de pensamento e um bom pastoralista”, refere o cónego Janela, actualmente na paróquia do Coração de Jesus, em Lisboa.

Quando regressou de Roma doutorado em Teologia, o padre José Policarpo foi encarregue pelo ainda cardeal Cerejeira para dirigir o seminário dos Olivais, em Lisboa, “ficou encarregue de o reconstruir”, continua António Janela, lembrando que aqueles foram “anos muito duros, os que se seguiram ao Concílio Vaticano II” e aos anos do Estado Novo, com padres a abandonar a Igreja Católica ou a serem afastados por não concordarem politicamente com a ditadura, por exemplo. Décadas mais tarde, é D. José que os reintegra e, em 1998, celebra o matrimónio do ex-sacerdote Felicidade Alves – a Fundação Mário Soares apresentou na terça-feira o arquivo pessoal deste ex-padre.

Durante as décadas em que esteve à frente do seminário foi “uma figura marcante” na formação dos futuros padres, recorda António Janela. D. António Ribeiro, o então Patriarca de Lisboa tinha “enorme confiança” em Policarpo e, sabendo que este seria nomeado para ser bispo do Porto, pediu directamente a Roma que José ficasse como seu co-adjutor com direito a sucessão, continua Janela. Assim foi. Depois da morte de António Ribeiro, em 1998, Policarpo sucede-lhe à frente dos destinos de Lisboa.

Foram os últimos anos, na primeira década do século XXI, que foram mais marcantes, avalia António Janela, recordando o Congresso Internacional para a Nova Evangelização que marcou a Europa católica e a pôs a reflectir sobre os desafios colocados à sua fé. “Foi um homem ecuménico.”

Actualmente, D. José Policarpo encontrava-se em Sintra e sentir-se-ia “um pouco isolado”. Depois de tantos anos de mundo, “é difícil adaptação, mas queria fazer um centro de espiritualidade e disse que o Papa o tinha encarregado de uma missão, sobre a qual não podia falar, mas era uma missão noutro país”, conta ainda António Janela.  

O cónego Álvaro Bizarro, ecónomo do Patriarcado de Lisboa, onde chegou pela mão de D. José, recorda um “homem bom”. “Acredito que as almas dos homens justos estão nas mãos de Deus."

Com Lusa

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