A paixão de Fernando Pessoa

Harold Bloom, um estudioso da literatura, escreveu uma vez um livro chamado A Ansiedade da Influência, no qual lidava com a tensão entre o grande escritor e o escritor ainda maior.

Para pôr as coisas em termos simples, o grande escritor que admira o escritor ainda maior passa pela tal “ansiedade da influência”, a admiração torna-se inveja, a inveja emulação, a emulação frustração, a frustração afastamento, e o afastamento (nos melhores dos casos) superação. Os maiores dos grandes escritores pairam como uma sombra sobre todos os outros: todo o escritor de língua inglesa vive na ansiedade da influência de Shakespeare (ou na sua rejeição), como o russo sob (ou contra) Tolstoi, etc.

Faz por estes dias cem anos, Fernando Pessoa encontrava a sua forma de escapar à ansiedade da influência, e de sair dela por cima. Também ele tinha Camões, e Vieira. E como escritor de língua inglesa, Shakespeare. Mas para poder ser maior, inventou um outro seu mestre, Alberto Caeiro, e declarou-o o seu ideal a atingir. Assim se libertou e superou em simultâneo. Poderíamos dizer que o mestre de Fernando Pessoa vivia dentro de si, mas isso é enganador. Pondo Alberto Caeiro no centro do seu sistema, Fernando Pessoa poderia deslocar a sua “ansiedade de influência” para fora de si. Camões ou Vieira (ou Shakespeare) estavam marcados na sua pele e de todos os outros escritores. Alberto Caeiro era um sol inventado, exterior a qualquer realidade, e à volta dele poderiam encontrar a sua órbita todos os outros planetas inventados de Fernando Pessoa: Ricardo Reis, Álvaro de Campos, e o próprio Fernando Pessoa. Foi como um momento-Galileu em literatura.

Depois, Fernando Pessoa fez o que fazem os grandes escritores: narrou a história. Mentiu um bocado e disse que tudo tinha acontecido no mesmo dia, 8 de março, um “dia triunfal”, disse ele, em que tinha inventado juntos os seus heterónimos mais importantes, com biografia e tudo, e escrito grande parte d’O Guardador de Rebanhos, e os poemas da Chuva Oblíqua, e as odes “futuristas” de Álvaro de Campos, e as odes propriamente ditas de Ricardo Reis.

Segundo os especialistas, parece que isto não foi bem assim, e que o dia triunfal de Pessoa durou vários dias. Até dia 13 ainda não tinha acabado o transe, e por isso ainda nos podemos declarar dentro do centenário. Nessa Europa ainda estranhamente calma, a poucas semanas de se desequilibrar na Grande Guerra (que lhe daria “O menino de sua mãe”), Fernando Pessoa passou a sua ansiedade da influência a todos os escritores de língua portuguesa que lhe sucederam.

Poderíamos chamar a isto, usando uma linguagem semirreligiosa, “o mistério de Fernando Pessoa”. Mas não há mistério nenhum, ele bem explicou o que sucedeu, e se mentiu um bocadinho foi só para fazer a coisa ainda mais simples e menos misteriosa.

Talvez seja melhor chamar-lhe “a paixão de Fernando Pessoa”, no velho sentido greco-cristão: alguém que se fez desaparecer por nós, ou alguém que reapareceu (em glória?) através do seu desaparecimento.

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