Vizinhos improváveis

O Mercado de Santa Clara renasceu graças aos seus novos inquilinos, todos muito diferentes uns dos outros, mas dividindo a mesma casa.

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O Luigi só cozinha com cogumelos, a Maria e o Pedro preferem o chocolate, a Isabel dedica-se aos origamis, o Eduardo só pensa em livros antigos. São meus vizinhos e vivem todos na mesma casa, o Mercado de Santa Clara. Parece caótico, mas a casa é suficientemente grande para tudo isto, e mais.

Houve tempos em que o Mercado de Santa Clara — inaugurado em 1877 e um belo exemplar da arquitectura do ferro da segunda metade do século XIX — estava cheio de frutas e legumes, de carne, de peixe. Depois, como aconteceu com praticamente todos os mercados de Lisboa, foi perdendo clientes e os vendedores foram partindo. O alfarrabista Eduardo conheceu-o bem. “O meu pai costumava dizer que eu cresci debaixo das bancas do mercado.” 

O pai começou por vender livros na Feira da Ladra, que acontece ali à volta, no Campo de Santa Clara, todas as terças e sábados. Depois, há uns 30 anos, com os espaços no exterior do mercado a esvaziarem-se, a câmara lançou um concurso e o alfarrabista passou a ter um espaço próprio, na esquina, onde primeiro o pai e hoje o filho (ambos Eduardos) continuaram a vender livros antigos. 

É aí, no alfarrabista Eduardo Martinho, que paro para conversar, num sábado de manhã. Ele oferece-me envelopes com imagens antigas da Feira da Ladra e ficamos a fazer contas aos anos que passaram desde que ali se instalou, até que espreita pela porta outra vizinha improvável. Tem um gorro na cabeça, pergunta se existe ali um dicionário de alemão-português e lança-se numa conversa daquelas em que tudo leva a tudo e que passa por histórias de infância numa aldeia esquecida, um casamento em que a noiva, enganada pelos pais, não sabia que estava a casar, um padre que lhe implorava que não casasse, enfim, um retrato de um Portugal que não foi assim há tanto tempo.

Os mercados de Lisboa mudaram. Houve um momento em que parecia que iam morrer. Mas alguns insistem em viver. O de Alvalade ainda se enche de frutas, legumes e peixe fresco; o de Campo de Ourique está na moda por causa das tasquinhas gourmet que ali abriram; o de Picoas tem a incontornável Açucena Veloso, que resiste com o seu império de peixe no andar de cima. E o de Santa Clara encheu-se de vizinhos improváveis, mas que coabitam em aparente harmonia. 

Dou a volta e passo pelos antiquários, pela loja que vende manga, a banda desenhada japonesa, pela de objectos vintage, por mais antiquários. Do outro lado, a Portugal Modernista, a prestar homenagem a Amadeo de Souza-Cardoso, Fernando Pessoa e Almada Negreiros; a Amasso Cerâmica; a Amores de Tóquio, com os seus origamis. Mais uma esquina, e o mundo cheira ao chocolate quente das Marias com Chocolate, onde bebo um café. 

E dentro do mercado viajamos à história do que comemos, e de como comemos, no Centro de Artes Culinárias. Hoje propõem-nos butelo com casulas, mas amanhã podem tentar-nos com licores exóticos. Olho para o andar de cima para ver se por acaso o Luigi está à janela do seu restaurante, o Santa Clara dos Cogumelos. Até já, vizinhos. Para a semana, venho cá jantar cogumelos.

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