(As): forma colonial de tratar as mulheres

Como mulher, dentro de um parênteses sinto-me a asfixiar.

Em 4 de Janeiro deste ano, surgiu no PÚBLICO uma notícia que desde logo me intrigou, a propósito do V Plano Nacional para a Igualdade, Género, Cidadania e não Discriminação (2014-2017). Nela, dizia-se que a secretária de Estado Teresa Almeida alertara para o facto de que escrever “os juristas”, para assim também englobar as mulheres, constituía uma linguagem discriminatória, pois que nitidamente sexista, mas que escrever “os (as) juristas” era uma “linguagem inclusiva”, não discriminatória. Fiquei perplexa. Depois, fui ver o próprio DR em que tal Plano consta e mais perplexa fiquei. Duas tendinites nos ombros, porém, desincentivavam a escrita. Quando o PÚBLICO voltou à questão em 22 de Janeiro, não resisti. É de facto extraordinário que um documento oficial destinado a combater a discriminação de género contenha ele próprio elementos graves de discriminação de género. Ninguém deu conta? É uma prática comum não rever os textos que vão para o DR?

Pessoalmente, esta questão diz-me muito, pois desde o ano lectivo de 1997-98 introduzi uma componente de “Metodologia da investigação não-sexista” numa unidade curricular que leccionei durante dez anos na Universidade do Minho, precisamente sobre metodologias da investigação. Quase metade do semestre, de quatro horas semanais, era dedicado ao assunto. Pode parecer muito tempo, mas depressa compreendi que, de outro modo, não conseguia ser eficaz: as alunas e os alunos achar-me-iam simplesmente exótica e continuariam sem perceber que, como escrevia o incontornável pedagogo Paulo Freire (ai, o “eduquês”!), “mudar a linguagem faz parte do processo de mudar o mundo”, ou que “A recusa à ideologia machista, que implica necessariamente a recriação da linguagem, faz parte do sonho possível em favor da mudança do mundo”. Como é possível pretender ter projectos emancipatórios e de não opressão – Freire escrevera Pedagogia do Oprimido em linguagem inteiramente androcêntrica, uma contradição que muitas americanas lhe fizeram notar quando a obra foi traduzida para inglês – mantendo as mulheres na invisibilidade ou entre parênteses? Como mulher, dentro de um parênteses sinto-me a asfixiar. Quererão os homens trocar de lugar comigo?

Estas disposições do V Plano são tanto mais estranhas quanto a antiga Comissão da Condição Feminina, em 1989, tinha por exemplo publicado uma pequena brochura de Isabel Romão em que as mulheres já não eram metidas entre parênteses. No mínimo, por facilidade, usava-se a “barra” (/). Vinte e quatro anos depois, é reler e ver a pertinência dessas páginas. Mais tarde, a então denominada Comissão para a Igualdade e para os Direitos das Mulheres tinha também alertado para estas questões (cf., por ex., texto de José Fonseca, em 1994). Em Portugal, não há verdadeira memória? É por isso que a estupidez, embora repetida, acaba no esquecimento, mas também as boas iniciativas?

No mencionado V Plano, todas as profissões são declinadas no masculino, seguindo-se o (as). Mais ainda: contrariamente às advertências comuns quando se fala de discriminação de género na linguagem, o género masculino aparece sempre em primeiro lugar, nunca se alternando esta ordem sacrossanta. Ora, num texto verdadeiramente inclusivo, não só os parênteses devem desaparecer, como se deve umas vezes evidenciar o género masculino de uma profissão, e noutras o feminino, e não dar sempre prevalência a qualquer um deles. Porque é que nunca aparece, por exemplo, “as (os) profissionais de”, ou “as/os profissionais de...”?

Fala-se no Plano de acções de sensibilização. Espero que durem no tempo, pois de outro modo as pessoas continuarão a pensar neste campo da discriminação de género como eu penso em euros: transformando-os ainda em escudos. Repararam que eu disse precisar de quatro horas em meio semestre para que finalmente alunos e alunas dessem conta da importância do assunto? E, já agora, porquê limitar essas acções apenas a certas/os intervenientes sociais? Olhem o campo da saúde, por exemplo. Um dia, quando estava ainda a fazer rádio por causa do cancro, a enfermeira perguntou-me: “E a seguir? Vão optar pela castração química?” Fiquei estonteada. Na minha cabeça surgiram-me os castrati, o desgraçado do Abelardo e os pedófilos. O que é que eu, como mulher, tinha que ver com isso?

Neste mundo que se almeja fraternal, mas não em simultâneo fraternal e sororal, a caminho de uma humanidade maior, parece de facto haver um mal antropológico em ser-se mulher, mesmo quando se pretende combater a sociodiceia masculina.

Docente aposentada da Universidade do Minho (laura.laura@mail.telepac.pt)

 

 
 

   

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