O Brasil de 2014

Anunciar que o Brasil tornou-se uma nova potencia mundial é um velho bordão daqueles que desejam afagar-lhe a vaidade nacional. Para não ir mais longe, esse hábito vem dos anos 70, quando o presidente Richard Nixon recebeu na Casa Branca o general brasileiro Emilio Medici. Anos depois seu sucessor foi à França e lá o presidente Giscard d'Estaing repetiu o mote. Em 2009 a revista The Economist pôs em sua capa uma montagem do Cristo Redentor do Rio de Janeiro como se fora um foguete: "O Brasil que decola". Quatro anos depois, outra capa, com o mesmo foguete a caminho do esborrachamento: "O Brasil estragou tudo?"

Todas essas imagens fazem parte de um imaginário de conveniência. Com o povo nas ruas e dois grandes eventos pela frente - a Copa do Mundo e a eleição presidencial - o Brasil e o governo de Dilma Rousseff vivem as dores de um avanço civilizatório. Coisa semelhante ao que ocorreu nos Estados Unidos e na Europa dos anos 60. A estabilidade da moeda, trazida pela social-democracia de Fernando Henrique Cardoso e os avanços sociais obtidos nos dois governos de Lula e da presidente Rousseff deram voz e agenda a quem não a tinha. Ao tempo de Cardoso uma empresa podia produzir o que quisesse, mas dependia e lucrava com a habilidade de seu diretor financeiro jogando com a inflação. Essa festa acabou. Ao tempo de Lula, essa mesma empresa lucrava apefeiçoando suas vendas para um mercado de 30 milhões de pessoas. Acabou-se também esse recreio. Hoje o empresário que não olha para baixo acaba-se.

Ninguém pode prever o resultado da Copa do Mundo, mas se a oposição for incapaz de conversar com esse novo país, Dilma Rousseff terá tudo para obter um segundo mandato. Ele dará ao Partido dos Trabalhadores um período de 16 anos de poder ininterrupto nas mãos de um grupo político homogêneo. Isso jamais aconteceu na história do país e embute riscos imprevisíveis.

Aqui vai uma tentativa de simplificação fabulesca da questão social com que a política de 2014 se defronta:

Imagine-se duas famílias de trabalhadores de renda baixa, vivendo num bairro da periferia de uma grande cidade brasileira. Lá, os serviços públicos são medíocres e o chefe de uma delas, Geraldo, casado com Sebastiana, detesta Waldemar, seu cunhado, a quem acusa de imprevidente e preguiçoso.

Graças à estabilidade da moeda e à expansão do crédito, compraram fornos de microondas (as mulheres não precisam mais esquentar o jantar) e computadores para os filhos. Geraldo, o previdente, comprou um plano de saúde para os seus. Custou pouco, mas prometeu bastante. Além disso, matriculou seu filho numa escola privada e sonha com o dia em que ele conseguirá uma bolsa de estudos numa universidade particular. (Esse programa, criado no governo de Lula, já beneficiou um milhão de jovens. Para efeito de comparação, a GI Bill de Franklin Roosevelt botou nas universidades 2,2 milhões de garotos que combateram na Segunda Guerra, moldando o que viria a ser uma nova classe média americana.)

Waldemar, o imprevidente, não comprou plano de saúde e mandou seu filho para uma escola pública. Os dois cunhados têm a mesma idade, bem como seus filhos.

Recentemente, Geraldo e Waldemar adoeceram, do mesmo mal. Um foi para o plano e teve sua consulta marcada para o início de abril. O outro foi à rede pública e marcaram-no para o fim de março. Waldemar teve seu dia de glória. Não paga nada e será atendido antes.

Dias depois, conheceram-se os índices de proficiência das escolas onde estão seus garotos. Aquela onde está o filho do previdente ficou um pouco melhor que a outra, pública e grátis. Novamente, Geraldo sentiu-se no papel de bobo. Quer diferenciar-se do cunhado, gasta em saúde e educação, mas patina.

É esse o Brasil que está na rua e sua mistura de sentimentos definirá a eleição. Gente que acredita numa economia de mercado, quer que ela lhe entregue o que oferece e que o governo faça cumprir os contratos desse mesmo mercado.

Os transportes públicos das grandes cidades são medíocres, controlados por uma comandita de cartéis e burocracias. O prefeito do Rio, por exemplo, orgulha-se de não gastar com subsídios para a mobilidade urbana, como se isso fosse mérito e Nova York pudesse ser considerada um exemplo de metrópole retrógrada. A melhoria da renda dos trabalhadores levou milhões de brasileiros a feirões de carros usados. Tanto Geraldo como Waldemar compraram modelos velhos e estão felizes. Abrem os jornais e vêem sábios atribuindo-lhes a responsabilidade pelos engarrafamentos. Mais: copiando Londres (onde o transporte público funciona e é subsidiado) defendem a criação de um pedágio urbano para o centro da cidade. Tudo bem, mas São Paulo está entre as cidades do mundo com maiores frotas de helicópteros. Esse meio de transporte não paga as taxas cobradas aos veículos. Disso resulta que se deseja uma cidade onde o banqueiro vai para o trabalho sem pagar imposto nem pedágio, enquanto sua secretária pagará os dois.

Chama-se a isso demofobia. Horror a pobre. Ela pode ir de Geraldo, demófobo na sua crítica a Waldemar, ao banqueiro do helicóptero. Não é tanto um sentimento de classe, mas um estado da alma. Para onde ele irá na eleição, é impossível prever. Assim como o New Deal de Franklin Roosevelt redesenhou o capitalismo americano, Fernando Henrique Cardoso e Lula redesenharam o brasileiro. Quanto tempo durou a hegemonia do partido democrata depois das reformas de Roosevelt? Numa conta formal, pelo menos vinte anos, até a chegada do general Eisenhower à Casa Branca. Admitindo-se que ele foi eleito porque ganhou uma guerra e não porque se opusesse às políticas dos antecessores, a conta vai para 36 anos. Se alguém achar que Richard Nixon não era um republicano de boa cepa, chega-se a um ciclo de 48 anos que termina com a eleição de Ronald Reagan, em 1981. Esse foi o preço pago pelos republicanos à demofobia.

Elio Gaspari é jornalista e colunista do jornal Folha de São Paulo

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