Na Crimeia, uma guerra entre “amigos”

Duas manifestações. Uns contra os outros. Mulheres e homens. Ucranianos e “russos”. Todos dizem “não à guerra”.

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Balões ucranianos num protesto que pediu "não à guerra" aos soldados "russos" Vasily Fedosenko/Reuters

Nada de novo na guerra da Crimeia. As duas manifestações estão frente-a-frente, ao lado dos dois exércitos frente-a-frente, mas tudo está calmo. Pelo menos é o que diz o chefe dos mais fortes, um homem que não quer dizer como se chama nem de que país vem.

Tudo se passa na mesma rua, à distância de uma pedrada, embora alguns estejam armados com lança-mísseis. É fácil ir falar com o inimigo, mas não é possível discutir assunto nenhum. Os agressores dizem-se aliás protectores, generosidade que deveria enchê-los de orgulho. Não se identificam, decerto por modéstia.

Uns estão fechados num quartel, sem comunicações nem comida - são os ucranianos. Outros cercam o quartel armados até aos dentes - chamam-lhes “russos”, mas eles dizem-se simplesmente “amigos”. Entre os manifestantes, uns gritam “Não à guerra!”, e dizem não querer o separatismo. Os outros gritam também “Não à guerra!”, e dizem também que não querem o separatismo. Mas umas são loiras outras morenas. Umas russas outras tártaras, ou, segundo as russas, “banderas”. Sim, nas manifestações, são todas mulheres. Na base militar, dentro e fora, só homens.

“Isto é a ocupação da nossa terra”, diz Lenara Chubukchieva, 43 anos, historiadora, casada, dois filhos. “Não acredito que eles tenham vindo para nos ajudar. Isto é uma invasão”. Lenara é uma das cerca de 200 mulheres que vieram manifestar-se contra a presença dos soldados russos. A base militar fica do outro lado da rua, à entrada da cidade de Bachchisarai, e está cercada por dezenas de soldados com armamento sofisticado, que inclui metralhadoras pesadas e lança-mísseis. São forças comandadas pela Rússia, ninguém duvida, embora eles não admitam. Muita gente nunca vira armas assim na Crimeia. “Só tinha visto metralhadoras destas nos filmes”, disse Shakir, o nosso intérprete.

“Se ficarmos em silêncio, eles vão entrar numa escalada de violência”, explica Lenara, referindo-se aos “russos”. “Isto é uma ameaça à Crimeia. Isto é a guerra”.

As mulheres trazem balões com as cores da bandeira da Crimeia e cartazes que dizem “Não à guerra” e “Mulheres unidas contra a guerra”. São mulheres de todas as idades, quase todas de etnia tártara. Gritam para os “russos”, que estão do outro lado da rua e fingem não ouvir. Os “russos” cercam a base de Infantaria, pequenos grupos dispostos a toda a volta do velho edifício, de onde nunca deixa de se ouvir uma “playlist” musical variada que inclui canções tártaras e rock and roll. Provavelmente é a forma que os sitiados encontraram de manifestarem o seu desdém.

Estão lá dentro há quatro dias, sem comida, nem acesso a telefones ou internet. Os russos chegaram no domingo e exigiram a rendição. Os militares ucranianos recusaram. O comandante deixou sair quem quis, só no primeiro dia. Depois os “russos” bloquearam as portas. Por amizade, é claro. Para os proteger dos fascistas. Agora, o destino de uns será o de todos. Ou se rendem, ou…

“Eles não se vão render, são uns heróis”, diz Aisha Umierova, 24 anos, uma das manifestantes. “Nós apoiamos as nossas forças militares”. Serão uns 30, ou 50 fechados lá dentro, dizem as mulheres. “Tenho amigos na base. Tentei telefonar, mas não atendem os telefones”.

Uma mulher grita com mais veemência do que a maioria. Tem olhos azuis, cheios de lágrimas e raiva, um bebé ao colo e um filho, de 29 anos, fechado na base militar. “Sim, ele é um soldado da Ucrânia, diz ela, sem desviar os olhos da direcção do quartel, sem mentir, sem se render. “Não à guerra! Não à guerra!” repete.

Do outro lado da rua, que se atravessa com três passos, há outra manifestação, a favor dos russos. “Não queremos a guerra”, diz Natalia Popkova, 37 anos, operadora de computadores. “Temos medo dos radicais fascistas que tomaram o poder em Kiev. Nós não elegemos aquele governo. Temos medo que eles nos proíbam de falar russo”.

É a principal queixa de todas as manifestantes deste lado da rua. O Parlamento em Kiev, sob a influência dos revolucionários de Maidan, aboliram a lei que atribuía ao russo o estatuto de língua oficial na Crimeia, além do ucraniano. Alguns russos temem agora que o próximo passo seja a proibição.

“Nós não temos medo da Rússia, mas sim da Ucrânia”, diz Natalia. “Estamos aqui para apoiar a ajuda destes amigos russos”. E todos à volta acrescentam argumentos e teorias que justificam esta inclinação. “Os ‘banderas’ [seguidores de Stepan Bandera, líder nacionalista ucraniano no tempo da Segunda Guerra] já atacaram russos em várias regiões. Eles querem-nos fora da Crimeia. São separatistas”, dizem.

Ludmila Michalovska, 55 anos, engenheira electrotécnica, loura, com um crucifixo ao pescoço, diz: “Nós devemos juntar-nos à Rússia, porque a Rússia é mais forte, e pode proteger-nos”. Outra voz acrescenta: “Os ‘banderas’ querem declarar a Crimeia um estado tártaro”. Natalia, de temperamento pragmático, diz: “Não queremos juntar-nos à União Europeia. Se o fizermos, perderemos poder de compra, porque lá os preços são muito mais elevados. Comida, casa, gás, tudo mais caro. E perderemos os benefícios sociais para os reformados”. Aponta para a outra manifestação, quase em triunfo: “As ‘banderas’ também vão perder os benefícios”.

Na manifestação pró-russos, quase todas as mulheres são louras, de meia-idade, e usam casacos de peles. No meio delas, surge uma com opiniões dissonantes. “Também sou russa, mas sou contra a presença das tropas russas aqui. Não devemos lutar uns contra os outros. Somos todos eslavos.”

Gera-se confusão, um homem que dizem ser o líder da milícia pró-russa corre para lá. Ela está errada, tudo está bem, nada vai acontecer, diz ele, em tom severo. “Vamos esperar pelo referendo”, diz o homem, que não se identifica nem fala a jornalistas. “Depois do referendo, a Crimeia terá um estatuto de maior autonomia dentro da Ucrânia, e a Rússia vai poder proteger-nos”, explicam os homens da milícia. Proteger-vos de quem? “Dos separatistas ucranianos”, explicam. “Depois, aos poucos, vamos sendo anexados à Federação Russa”.

A russa dissidente, provavelmente atingida por doses excessivas de confusão mental, desaparece na multidão. A gritaria das mulheres não pára, dos dois lados da rua. Passam carros a buzinar, não se percebe a favor de quem. Um Lada do tempo soviético, ferrugento, mas com vidros fumados, e um aileron grande como o de um avião, tem escrito na porta: My life, my rules”. Nada de novo na guerra da Crimeia.

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