Quem canta já nem os seus males espanta

Diz a sabedoria popular que quem canta seus males espanta. Ou espantava, que a crise veio dar cabo da sabedoria. A notícia do exílio voluntário de Fernando Tordo no Recife suscitou, como era de esperar, reacções curiosas. Na televisão traçaram-lhe breves resenhas de vida, como se tivesse morrido. E nas redes sociais cruzou-se a indignação com a maledicência. Nada a que Portugal não esteja já habituado. Mas, para lá do caso particular de Tordo, ou a pretexto dele, não é mau lembrar, em parcas palavras, a situação dos músicos portugueses. Há quem imagine que vivem como nos filmes, com rendimentos supranumerários, em casas fantásticas e com mil e um caprichos de vedetas. Doce (ou amargo) engano.

Nos tempos em que a venda de discos permitia rendimentos razoáveis, alguns viviam relativamente bem. Mas como o mundo da edição ruiu, hoje são eles que têm de andar a gravar os discos, com a ajuda de amigos que gravam com eles precisamente por serem seus amigos, a esmagadora maioria sem receber um cêntimo, na esperança que alguma editora os aceite e distribua.

Antes, as editoras andavam à “caça” de artistas e disputavam-nos, acenando com contratos cada vez mais altos. Hoje, são os artistas que andam de porta em porta, a “vender” algo que já gravaram na esperança de que isso lhes traga convites para concertos. Mas também aqui Portugal é um país estranho. As mil e uma salas que por esse país se ergueram, muitas já com boas condições para vários tipos de espectáculo, não servem para rodar o trabalho dos músicos porque, ao decréscimo ou falência dos convites das câmaras e juntas de freguesia (que achavam por bem promover espectáculos a custo zero para o público), sucedeu-se o vazio. Muitas vezes, quem quer apresentar um trabalho tem que alugar a sala pelos seus próprios meios e, na ausência de contrato, ficar dependente das receitas de bilheteira. Como os bilhetes não podem, nem devem, ser caros, e como é preciso pagar transportes, agências, segurança, luzes, etc., muitas vezes o saldo é, logo à partida, negativo. Os músicos não andam por aí a queixar-se mas o cenário em que se movem é totalmente desmobilizador. 

A isto acresce o desejo de toda a gente querer ter acesso a músicas, de preferência novas e de boa qualidade, sem pagar um cêntimo por elas. Ninguém se imagina a pedir “borlas” a um cozinheiro, engenheiro, arquitecto, contabilista, motorista ou advogado, mas toda a gente acha normal que um músico escreva e grave canções para serem distribuídas gratuitamente na Internet.

Toda a gente gosta de música mas poucos se dispõem a pagar por ela. Por isso, não é de admirar que os músicos se tornem numa espécie de “pedintes” silenciosos, na ânsia da próxima oferta, que pode ser o anúncio de um banco ou de uma loja de moda. E isto não é, como por aí se diz, porque falham os apoios do Estado, que para aqui não conta, mas sim por falharem as regras básicas do mercado: pedem-lhes para dar a única coisa que eles têm para vender. E eles, muitas vezes contrariados, cedem, na esperança de que um disco (pelo qual receberão pouco ou nada, na retracção de vendas e na multiplicação das “borlas”), lhes sirva de “passaporte” para concertos que ninguém sabe se haverá, onde ou quando. É um cenário cruel? É. Mas é genuinamente nosso. Criámo-lo e habituámo-nos a viver com ele.

Aos que acham (felizmente ainda há muitos) que a música é coisa pela qual vale a pena pagar, duas notas de agenda: a 5 de Março, dia em que o PÚBLICO faz anos, haverá no Cinema São Jorge (às 21h30) um espectáculo de homenagem a Pete Seeger, o trovador universal que morreu em Janeiro, deixando-nos como herança um riquíssimo reportório americano e transnacional. Chama-se We Shall Overcome e o mínimo que se deseja é que esteja à altura do homenageado. Já no dia 28 de Março celebram-se, no Coliseu de Lisboa, quadro décadas do I Encontro da Canção Portuguesa (21h30). Chama-se Cantar Grândola 40 anos depois, tem muitas vozes e é promovido pela Associação José Afonso, cantor que esteve no palco em 1974 e cuja memória persiste na grandeza da sua música. Para ambos, vendem-se bilhetes. Porque a música paga-se.

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