Mitos tóxicos do nacionalismo catalão

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Esta semana, o governo de Barcelona enviou uma “embaixada” a Lisboa. Na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa dois catalães, Francesc Homs e Francesc Vendrell, discutiram com portugueses “o processo político da Catalunha”. Homs é o conselheiro (ministro) da presidência e porta-voz da Generalitat (o governo de Barcelona). Vendrell é um diplomata e professor de Direito Internacional que esteve ligado ao processo de Timor. Não foi um evento académico.

 Foi organizado pelo Conselho de Diplomacia Pública da Catalunha (Diplocat), criado para defender no estrangeiro o direito à autodeterminação. Em Outubro, esta acção foi dobrada pela revista Sàpiens que editou um livro — Catalonia Calling, o que o mundo tem de saber — enviado a mais de 14.500 personalidades internacionais. É uma persuasiva exposição sobre os “direitos históricos” da Catalunha à independência.

A Diada de 2014
A sete meses do referendo sobre a independência (9 de Novembro), a batalha pela opinião pública — na Catalunha e também na Europa — vai intensificar-se. Um dos terrenos privilegiados é o da História. O Conselho Assessor para a Transição Nacional (CATN), nomeado pela Generalitat para “assessorar o processo de independência”, multiplica as iniciativas de propaganda. Tanto o Diplocat como o CATN são supervisionados por Homs.

Madrid considera o referendo inconstitucional. Para o governo catalão de Artur Mas, o “direito de decidir” é sagrado. Não é certo que a consulta se chegue a realizar. A mobilização tem um objectivo intermédio: a Diada de 11 de Setembro, o “dia místico” da nação em que se comemora a queda de Barcelona em 1714, no fim da Guerra da Sucessão.

Trata-se de celebrar a Diada num clima de máxima exaltação nacional. A mobilização pesará na relação de forças — tanto no cenário de uma negociação com Madrid como no de uma ruptura. A Mas interessa manter as duas saídas em aberto. Os radicais esperam que o clima de “exaltação nacional” desemboque numa “declaração unilateral de independência”.

“História falsa”
Há uma “questão catalã”, que remonta à sublevação de 1640-1652. De resto, a História de Espanha passa por recorrentes tensões entre o centro e as periferias. Não é isto o que está em causa, mas a tentativa de “reinvenção da História” por parte do nacionalismo catalão.

O livro Catalonia Calling é paradigmático e segue as directivas do CATN. Há dois pontos fulcrais. O primeiro é uma alucinação: a ideia de que a Catalunha foi um Estado soberano durante 700 anos. Para isso apaga a existência do Reino de Aragão, de que a Catalunha fazia parte. A Coroa de Aragão é transmutada em “Coroa catalano-aragonesa”.

O segundo é a tese dos “300 anos de espoliação” da Catalunha por Espanha desde 1714, espoliação que ainda hoje continua. O que os nacionalistas não explicam é por que, nesses 300 anos, a Catalunha se tornou na região mais rica e dinâmica da Espanha.

Em Novembro, o Centro de História Contemporânea da Catalunha — também dependente da Generalitat — organizou um simpósio intitulado “A Espanha contra a Catalunha”. Foi aberto por Homs, que proclamou: “A celebração do tricentenário de 1714 não é o de uma derrota, mas de uma vitória. O projecto [espanhol] de assimilação fracassou e a prova é que estamos aqui hoje.” Acrescentou: “A Catalunha terá uma oportunidade de redimir a derrota sofrida há 300 anos se apostar numa via segura mediante uma consulta soberanista.”

Foram anunciadas dezenas de iniciativas, desde uma marcha por 52 municípios “onde é visível a cicatriz dos cenários de guerra” [da Sucessão] até um videojogo que permitirá às crianças “fazer uma viagem ao passado”. A “engenharia histórica” começa na infância.

Dezenas de historiadores criticaram o simpósio. Ricardo Garcia Cárcel, da Universidade Autónoma de Barcelona e especialista dos séculos XVII e XVIII, denunciou o título — “historicamente indefensável, absurdo e anticientífico” — e a manipulação nacionalista “alimentada por pseudo historiadores que montam um discurso ao serviço de uma causa”.

O britânico John Elliott, historiador da Catalunha e do império espanhol, resumiu: “É um disparate.” Acrescentou: “Uma sociedade precisa dos seus mitos, mas se os mitos dominam e entorpecem a investigação autêntica chegamos a um ponto em que um povo se fecha sobre si mesmo e adopta uma postura de agravo, pensando que os seus desastres foram culpa dos outros.”

Lamentou numa entrevista: “Os jovens catalães aprendem uma História falsa. Chocou-me, numa universidade catalã, ouvir um jovem que até estudava História e acreditava que a Guerra Civil [1936-39] tinha sido uma guerra entre a Espanha e a Catalunha.”

É significativo que o primeiro relatório do CATN, de 25 Julho de 2013, fundamente na História a legitimidade do referendo. “Em termos de legitimidade é a História que importa.” Remonta ao ano de 987. Anotou o constitucionalista catalão Francesc Carreras: “Nas democracias actuais, a legitimidade dos poderes políticos — e dos seus actos, como a convocatória de uma consulta — não deriva da História mas da vontade dos cidadãos expressa nos termos da lei. A legitimidade política coincide com a democrática. Qualquer outra postura é algo próprio de épocas passadas, anteriores às revoluções liberais.”

Regressão catalã
Há meses Joaquin Coll, historiador do catalanismo, deixou uma advertência sobre esta obsessão: “A carga historicista do tricentenário de 1714 empurra a política catalã para o romantismo e para a agonia. A única coisa que os nacionalistas não se podem permitir é que em 2014 não aconteça nada, quanto mais não seja uma nova derrota para comemorar.”

A vitimização produz nacionalismos infelizes que inventam um inimigo para poder sobreviver. Observou o jornalista catalão Enric Company: “O bloco social que se está a condensar politicamente em torno do independentismo não se expande impulsionado pela consciência da força da Catalunha mas, ao contrário, pela certeza de uma fraqueza que ameaça a sua sobrevivência como nação.”

Não cabe aqui analisar o estado do confronto entre Barcelona e Madrid e entre os catalães. Fica a pergunta do sociólogo Enrique Gil Calvo, da Universidade Complutense de Madrid: “Isto levanta inquietantes enigmas culturais, designadamente a conversão dos catalães a um nacionalismo étnico, vitimista e anti-espanhol. Como é possível que o povo mais culto, moderno e ilustrado da Pensínsula Ibérica tenha caído em semelhante regressão irracional?” 

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