O ponteiro, o Benfica, o PSD, os heróis e o Congresso

1 – No sábado o Coliseu quase me pareceu um manicómio. Lá dentro, o PSD. Essa espécie de Benfica – glorioso e maldito, enorme e transversal, sedutor e infrequentável. Capaz do melhor e do pior, como se fosse a mesma coisa.

Desta vez, trocando o amável convite de uma televisão por um posto de observação doméstico. Vi tudo e vi bem. Com a certeza irrefutável (irrefutável é menos ardiloso que irrevogável) de que não há, em partido algum, congressos assim. Não é novidade, é um rigoroso exclusivo. Um segredo. Ando há quarenta anos a tentar saber qual.

2 – O primeiro alerta veio com a catarse autodepressiva de Luís Filipe Meneses, sincera ainda por cima – o que agravava as coisas – que teve porém a vantagem de mostrar que o ponteiro político do Congresso começara a girar na inesperada direcção do “tudo pode acontecer”. E de caminho, a desvantagem de me distrair da intervenção de Nuno Morais Sarmento – interessante, politicamente substancial, lucidamente portuguesa.

Mas já uma surpresa (o PSD é farto em surpresas) ocupava o Coliseu: a oficialização de Rangel como cabeça de lista às eleições europeias. Informado nessa mesma manhã pela direcção do PSD de que “afinal” seria já na condição de candidato número 1 da coligação que subiria ao palco, Paulo Rangel, homem avisado, fez de conta que tivera dias para preparar o que redigira porém em pouquíssimas horas e arrancou discurso de estofo, com desafiante repto a Seguro.

O ponteiro agitou-se, a temperatura subiu. Minutos depois, entrariam em descontrole (o ponteiro e a temperatura) quando de supetão, como se a ideia lhe tivesse ocorrido dez minutos antes, Marcelo entrou no Coliseu: uma catarse ao contrário, num “impulso” preparadíssimo que envolvia a Madeira, um diálogo com Jardim, diversos estados de alma, um avião, um automóvel, o Marquês de Pombal e talvez mais ruas e histórias, fui incapaz de captar todas.

Mas tão previamente preparado estava o “impulso” que, dias antes, quando um “companheiro” de primeira linha lhe perguntara se ele (Marcelo) ia ao Congresso, que Deus o livrasse, respondeu-lhe o professor do país. O companheiro confiou. Sem alcançar que o seu adversário (no PSD é costume ser-se “adversário”) tinha mesmo de ir ao Coliseu sem avisar. E como o que tem de ser tem muita força, Marcelo foi, metade coração, metade política e circo: mesmo quando fala a sério Marcelo Rebelo de Sousa faz rir. Dá que pensar (mas o PSD não se importa.)

3 – Metade coração: Marcelo é genuinamente “dali”, tinha saudades, queria conversar em família (o PSD gosta disto). Ocupando a cena, dominou-a: orientou os aplausos, provocou as pausas, manipulou afectos, espevitou emoções. Com a plateia no bolso pôde politicamente tratar de si. Avançara, duvidoso e temeroso para o Coliseu: que rasto deixara no PSD profundo (e no outro) o ácido que prodigamente ele atirava, sobre o Governo e o primeiro-ministro, domingo após domingo, desde há mais de dois anos? Pior: que marca deixara na “família” o (suposto) “veto” de Passos Coelho às suas ilusões presidenciais?

Interessado na corrida presidencial, Marcelo precisava como pão para a boca destas respostas. Teve ambas. E mesmo que as palmas nem sempre signifiquem apoio político, o partido ama-o e Passos viu uma plateia de pé a sancionar esse amor.

Aqui chegados, pergunto: so what?

Não julgo que o herói do Coliseu venha, fora do écran, a interferir ou influenciar o que quer que seja na política, no governo, no pós-troika – a única coisa que verdadeiramente conta –, nas presidenciais, no futuro, no destino colectivo, no país. No Coliseu, Marcelo quis acertar contas e exibir o seu resultado. Está feito. Duvido que haja próximos episódios. E menos ainda que ele seja capaz deles.

4 – Santana nunca desilude, embora a fasquia estivesse alta.

Houvera já as, digamos, invulgares performances de Menezes e Marcelo (foi aí que pela primeira vez me ocorreu a ideia de um formidável manicómio); houvera o tom “sério” de Morais Sarmento e de Rangel (o PSD também é isto) e ia haver Santana, acabado de entrar no Coliseu por entre um tumulto excitado de ruído e holofotes, e – coincidência eventualmente embaraçosa  – ao mesmo tempo que Luís Marques Mendes: Mas lá dentro, um queria falar, o outro ouvir.

Pilotar a Santa Casa deu a Santana Lopes fôlego para, conhecendo o terreno, acender sinais vermelhos na rota do Governo. Foi sincero, veemente, demagógico. O ponteiro político perdeu-se no puzzle das suas palavras. Mas o Coliseu reteve o essencial: Santana reivindicou para si o “sumo” – e o resumo – do Congresso, simbolizado no sinal político por ele transmitido a Passos Coelho. Mais: não pertencendo à família “passista” sabia ser o único ali a poder falar de fidelidade, evocando até os custos dessa “impopularidade” por essas televisões fora. Dir-se-á que tem Belém na mira. Talvez, mas não é esse o tema. O tema e o ponto é que Pedro Passos Coelho saiu do Coliseu mais “abrangentemente” apoiado: Santana foi o porta-voz, mas dentro do apoio estavam também – felizes ou infelizes – Marcelo, Meneses, Mendes. O país viu. E viu uma vitalidade e uma afectividade que pareciam adormecidas no PSD. Ninguém teria apostado um cêntimo nem numa coisa, nem noutra.

5 – A previsível “chatice” daqueles dias transformara-se num surpreendente acontecimento político. O ponteiro político reanimou-se, ziguezagueou estonteado ao ouvir o nome de Miguel Relvas (uma falha política sem perdão) e descansou no líder do PSD.

6 – E agora? Agora é preciso cuidado, as boas notícias podem ser traiçoeiras como o mar. É preciso política para fazer melhor e mais atenção para chegar às pessoas. Sem elas... Paulo Rangel que conte (ao Governo) a história do jantar de Natal.

Jornalista

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