Os que dormem debaixo das ondas

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Carsten Jensen nasceu em Marstal, a pequena vila de marinheiros numa ilha a Sul da Dinamarca onde se passa este Nós, Os Afogados ISAK HOFFMEYER

Em Nós, Os Afogados, fabuloso romance do dinamarquês Carsten Jensen, ecoam as grandes epopeias de Melville, Stevenson e Conrad

No cemitério de Marstal quase só há mulheres e crianças porque durante séculos o mar não devolvia os seus mortos. Como se os quisesse deixar a dormir para sempre debaixo das ondas. Marstal é uma pequena vila na ilha de Aero, no Sul da Dinamarca. Lugar habitado por gerações e gerações de marinheiros que deixaram que o mar e o vento os arrastassem para longe, enquanto as mulheres e os filhos esperavam anos pelo seu regresso ou então por notícias de um naufrágio, tornou-se no principal cenário de Nós, Os Afogados, romance ambicioso do escritor dinamarquês Carsten Jensen (n. 1952). Na fronteira entre o livro de viagens e o romance de aventuras, misturam-se nele histórias de coragem, amizade, traição, lealdade e amor, também vários naufrágios, motins, guerras, tempestades, icebergues, ataques de canibais, fabulosos contrabandistas, e ainda a cabeça mirrada do capitão Cook. Em Nós, Os Afogados ecoam por todo o lado as grandes epopeias marítimas de Herman Melville, de Robert Louis Stevenson e de Joseph Conrad.

Apesar de um passado de séculos no comércio através dos mares, os países escandinavos não têm uma tradição de literatura marítima. Podemos sempre encontrar referências ocasionais ao mar numa qualquer canção popular patriótica ou mesmo na obra de um escritor, mas isso, obviamente, não faz a tradição. “Nunca vi o meu trabalho como parte de uma tradição literária escandinava, porque ela não existe”, diz Carsten Jensen. “A recepção do livro no Grã-Bretanha e nos Estados Unidos é um espelho disso: o romance quase nunca é referido como dinamarquês, é antes lido como um livro que encaixa na tradição marítima anglófona.” Durante a fase de preparação da escrita, Jensen leu todo o cânone da literatura marítima, romance após romance, não apenas em busca de inspiração mas para conhecer melhor essa grande tradição literária.

Logo na segunda página de Nós, Os Afogados há uma mal disfarçada referência a uma personagem do White-Jacket, de Herman Melville. Esse jogo subtil de intertextualidades continua ao longo das quase 800 páginas do romance. E não apenas com os três autores atrás referidos, mas também com Mark Twain e Jack London. As influências são assumidas: “Conrad é um dos meus autores favoritos de sempre. Descobri-o no princípio dos anos 80 numa viagem à Indonésia e leio-o desde então. Não tento imitá-lo, a sua linguagem e o seu estilo complexo e subtil são para mim totalmente inimitáveis. Mas aprendi dele qualquer coisa importante: o papel crucial da honra, do dever e da responsabilidade no mundo dos marinheiros.”

A história narrada atravessa algumas gerações e decorre ao longo de um século, de 1848 a 1945; começa com um episódio da guerra naval entre a Dinamarca e os alemães de Schleswig-Holstein, e acaba nos últimos dias da Segunda Guerra Mundial com a odisseia dos marinheiros dinamarqueses ao serviço dos navios dos Aliados. Os protagonistas, marinheiros de sete mares, não entendem a guerra, estão no meio dela sem nenhuma experiência militar anterior, têm expectativas ingénuas sobre uma vitória que não irá acontecer — Carsten Jensen enuncia como que um arquétipo de qualquer guerra. “A guerra era como navegar. Poder-se-ia aprender sobre as nuvens, a direcção do vento e as correntes, mas o mar permaneceria para sempre imprevisível. O máximo que se podia fazer era adaptarmo-nos a ele e tentar regressar vivos a casa” (p. 33).

Entre as guerras, as aventuras das personagens sucedem-se. Primeiro com Laurids, o viajante celeste, que desaparece numa viagem, de seguida com o seu filho mais velho, Albert, que o procura por muitos portos do Pacífico, e depois ainda com Knud Erik, um rapaz que ele adopta. Mas é Laurids a personagem mais fascinante, que logo no início da história assusta toda a aldeia inventando um ataque dos alemães, para mais tarde, já numa batalha a sério, ser vítima de uma explosão e a ela sobreviver miraculosamente sem quaisquer ferimentos. “Laurids Madsen esteve no Céu e voltou a descer por causa das suas botas. Não planou até ao topo do mastro de uma fragata; não passou, na verdade, do mastaréu. Esteve às portas do Paraíso e viu São Pedro, embora o guardião da entrada na vida celestial lhe mostrasse apenas, de relance, o rabo” (p. 13).

Vários mundos

Como o título do romance anuncia, o narrador de Nós, Os Afogados é uma voz colectiva (à excepção da última parte, que é narrada na primeira pessoa do singular), as vozes em uníssono de todos os habitantes do lugar de Marstal, que em jeito de coro de marinheiros insepultos vai narrando as suas vidas. Jensen fez pesquisas em Marstal durante anos, consultou arquivos e falou com pessoas. “Tinha a ideia de que deveria saber tudo o que tivesse a ver com o mar e com a marinhagem.” Mas a parte mais importante desse processo de trabalho talvez tenham sido as várias sessões em que convidou os habitantes locais para a biblioteca pública e lhes leu partes daquilo que estava a escrever, debatendo com eles as suas ideias ao mesmo tempo que ouvia histórias incríveis que acabou por incluir no romance. “Eles desenvolveram um sentimento de serem também autores do livro”, diz Jensen. “Se fosse uma empresa comercial, teriam comprado quotas e teriam vindo ter comigo na rua e pedido que um avô ou um tio tivessem um papel proeminente no romance. Tive de lhes explicar que apesar de ser a história da vila e das pessoas, eu e o meu romance éramos o capitão neste barco singular, e que, como eles sabiam, pertence ao capitão o direito e o dever de decidir. Uma metáfora que eles perceberam e respeitaram. No fim, todos sentiram que o livro era tanto deles como meu e no dia da publicação o coro local dos marinheiros cantou, havia bandeiras em todas as ruas e cerveja de graça. Celebrámos juntos. Numa pequena aldeia de 3.000 habitantes, a livraria local vendeu 1.200 exemplares nos primeiros dois meses.”

A personagem Laurids Madsen é esse herói colectivo que carrega nele todos os afogados, todos os perdidos que nunca voltaram a Marstal, todos os destinos dos que navegaram nos muitos mares do mundo, da Terra Nova a Samoa, da Tasmânia à Rússia. É o marinheiro de façanhas inacreditáveis, aventureiro e onírico, ingénuo e provocador. “Foi até sul do cabo Horn e ouviu os pinguins gritando na noite escura como breu. Viu Valparaíso, a costa oeste da América e Sydney, onde, no inverno, as árvores largam cortiça e não folhas (...). Cruzou o equador, cumprimentou o Rei Neptuno e sentiu o sobressalto quando o navio passou pela Linha. Nessa ocasião, bebeu água salgada, óleo de peixe e vinagre. Foi baptizado em alcatrão, cinzas e cola, barbeado com uma faca ferrugenta com lâmina serrilhada e os seus cortes foram limpos com sal e lima. Obrigaram-no a beijar o rosto de cor ocre e marcado pelas bexigas de Anfitrite e fizeram-no enfiar o nariz no seu frasco de sais que tinham enchido com unhas cortadas. Laurids Madsen viajara muito” (p. 14).

Carsten Jensen nasceu em Marstal, filho do capitão de um navio mercantil que viajou por todo o mundo e que quis que as suas cinzas fossem lançadas ao mar na costa da ilha de Aero. “O meu pai deu-me muito. Era um grande contador de histórias. Entretinha-me durante horas com as suas divertidas aventuras de uma longa vida no mar. Claro que metade delas não eram verdadeiras, percebi isso mais tarde. Mas a ficção é contar a verdade com a ajuda de mentiras. Por isso, os romances são basicamente para colocar questões existenciais, não para dar as respostas.”

Em Marstal atraiu-o o cosmopolitismo do lugar, o facto de toda a gente parecer viver em dois sítios ao mesmo tempo: a vila e o mundo, o local e o global, também o antigo e o moderno. A propósito disso, Jensen recorda outro escritor dinamarquês Herman Bang (1857-1912) que viveu algum tempo em Marstal, no final do século XIX, e que escreveu num dos seus artigos: “O vizinho à minha esquerda navegou durante 17 anos na costa japonesa, e o outro, à minha direita, conhece intimamente todas as curvas do rio Congo.” Isto acontece ainda com os que lá vivem hoje.

O camponês só conhece o seu próprio mundo, a terra em redor da casa, e alguns animais de que trata. É conservador por natureza. O marinheiro viu vários mundos e sabe que há mais do que uma maneira de fazer as coisas. Talvez seja por isso que um país que lembra o seu passado marítimo está mais aberto ao mundo, mais capacitado para lidar com os imperativos da globalização. Isso parece ter sido crucial para escrever Nós, Os Afogados. No entanto, Jensen refere algumas mudanças de mentalidade. “Se há duas gerações perguntasse a um dinamarquês típico que espécie de nação éramos, a resposta seria: uma nação de marinheiros. Se fosse hoje, ele responderia que fomos uma nação de camponeses. Esta reinterpretação do passado aconteceu, e é, em minha opinião, uma perda trágica da memória histórica. Isto teve a ver com o renascimento dos nacionalismos de direita na maior parte dos países europeus.”

As viagens em literatura são uma forte metáfora para a mudança. Os contos de fadas, por exemplo, são muitas vezes sobre viagens, sobre deixar a casa, deixar o conhecido para trás. E no regresso há sempre uma necessidade de confirmar, ou de rejeitar, os valores que foram então deixados. Carsten Jensen viajou muito, quer como repórter na China, no Afeganistão e no Cambodja, quer a título pessoal. “Fiz duas grandes viagens na minha vida. A primeira aos 19 anos, à Índia. E a outra, que durou cerca de um ano e em que dei a volta ao mundo, aos 40 anos. Ambas me mudaram a vida. As viagens sempre foram um teste a quem realmente somos.” 

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