Deputados querem passar para Governo o ónus da análise ao acordo ortográfico

Ameaça de voto contra da bancada “laranja” a resolução do PSD e do CDS-PP obrigou deputados a retirar cenário de revogação ou suspensão do acordo.

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Parlamento já teve um grupo para acompanhar a aplicação do AO, mas o seu trabalho não teve aplicação prática Manuel Roberto

Discutir a aplicação, sim; atitudes radicais de suspender o acordo ortográfico, não. Esta é a posição da maioria parlamentar acerca do actual acordo ortográfico, tema que hoje volta à Assembleia da República, onde deverá ser aprovada uma resolução que recomenda ao Governo que constitua um grupo de trabalho, no âmbito da Presidência do Conselho de Ministros, para analisar a aplicação da actual versão do acordo ortográfico nos vários países que o subscreveram.

É também discutida uma petição pela desvinculação de Portugal do acordo, assim como propostas de resolução do PCP e Bloco que vão no sentido da renegociação dos termos do acordo e da revisão.

A proposta da autoria dos deputados centristas José Ribeiro e Castro e Michael Seufert e do social-democrata João Mota Amaral, foi, no entanto, suavizada à última hora, deixando cair dois pontos sobre as consequências das conclusões para poder contar com o voto favorável do PSD. O CDS-PP, ainda assim, deverá manter a liberdade de voto, sendo que a matéria é controversa entre os deputados centristas.

Os dois pontos apagados da proposta previam a possibilidade de o grupo de trabalho propor a revogação, suspensão ou revisão da resolução do Conselho de Ministro de Janeiro de 2011 que antecipou a entrada em vigor da aplicação do acordo para o sistema de ensino, a administração pública e o Diário da República. Na sequência disso, a Assembleia da República deveria adoptar decisões idênticas.

O PSD, porém, não quer ir tão longe. José Ribeiro e Castro desvaloriza a necessidade de ter que “emagrecer” a proposta dizendo que não eram parágrafos “essenciais”. O importante, reforça, é que se “constitua de facto esse grupo de trabalho ao nível do Governo e que haja um acompanhamento mais estreito da execução do acordo em todos os países, assegurando eu Portugal não fica isolado”. A vantagem de se tratar de um grupo de trabalho a nível governamental é que ganha “instrumentos que o Parlamento não tem, como o acompanhamento diplomático mais efectivo da realidade no Brasil e também em Angola e Moçambique”. Propõe-se, por isso, que o grupo de trabalho inclua representantes das áreas dos Negócios Estrangeiros, da Educação, da Cultura, da Economia e da Ciência.

Entre Janeiro e Julho do ano passado, o Parlamento teve um grupo de trabalho para acompanhamento da aplicação do acordo ortográfico no âmbito da Comissão de Educação, Ciência e Cultura, constituído por proposta do PCP, em que foram ouvidas dezenas de pessoas e entidades e recolheu muita informação. O trabalho não teve aplicação prática. Ribeiro e Castro diz que todo esse acervo pode e deve ser usado pelo grupo que for constituído pelo Governo.

O grupo de trabalho proposto deve, no prazo de quatro meses, apresentar um “relatório objectivo e factual com o ponto de situação da aplicação do acordo” nos diferentes Estados quem o subscreveram e sobre a “perspectiva da sua efectiva aplicabilidade obrigatória até ao final de 2015 em todo o espaço de referência”. Também deve debruçar-se sobre o “estado e calendário previsível de conclusão” dos diferentes vocabulários ortográficos nacionais e do vocabulário comum. Ribeiro e Castro salienta a necessidade de o vocabulário nacional “poder ser melhorado” e, do ponto de vista político, “é importante não comprometer a gestão comum da língua”.

“Sei que há muita gente contra o acordo. Esse não é o meu ponto de vista”, adverte Ribeiro e Castro, que defende que é preciso “melhorar a aplicação. É importante não ficarmos sozinhos numa terra de ninguém e com uma língua que não é exactamente a nossa, em que não nos reconhecemos, e que é um desvio acentuado da matriz europeia da nossa língua.”

Esta pouca vontade do PSD em entrar nesta guerra ficou também clara na reunião da bancada, marcada pelo pedido de Mendes Bota para que o partido tomasse uma posição clara sobre o assunto. A vintena de intervenções, parte a favor, parte contra, mostrou a divisão entre os sociais-democratas. O deputado algarvio tinha mesmo preparado uma proposta de projecto de resolução que acabou por deixar na gaveta.

“A decisão da direcção vai no sentido de não viabilizar nada que ponha em causa a continuidade da aplicação deste acordo ortográfico”, contou ao PÚBLICO. Mendes Bota pedia à bancada que se pronunciasse no sentido de apresentar um projecto de resolução que propusesse a revogação e o desencadear de um novo processo de revisão do acordo ou propusesse a suspensão do acordo. Ambas foram rejeitadas. “Foi uma oportunidade perdida de se pôr um travão a um processo que vai colocar em causa o futuro da língua portuguesa”, defende o deputado. Hoje fará uma declaração de voto aquando da votação da proposta do centrista Ribeiro e Castro por ser uma solução “pelos mínimos, que não tem força vinculativa. Mas é melhor que nada; vamos ver se o Governo a acata.”

O PÚBLICO apurou que o PS deverá votar contra a generalidade dos projectos, ainda que haja dúvidas sobre se poderá deixar passar a proposta da constituição do grupo de trabalho através de abstenção e, se os projectos forem votados por alíneas, talvez também a proposta do Bloco de acompanhamento da implementação do acordo.

Sem querer entrar em detalhes sobre a votação, o deputado pelo círculo da emigração, Paulo Pisco, argumentou que o acordo ortográfico está “indissociavelmente ligado à projecção e estratégia global da língua portuguesa”. Os socialistas rejeitam dar abertura a quem “queira pôr em causa um acordo internacional” e defendem que é preciso “salvaguardar a importância da implementação plena do acordo”. Para Paulo Pisco “este ruído que se tem criado, a tempos, na sociedade portuguesa contra o acordo tem argumentos pouco consistentes”.

No caso do PCP, o partido quer que o Parlamento recomende ao Governo que crie um Instituto para a Língua Portuguesa, que seja uma verdadeira Autoridade da Língua; que alargue o prazo de transição, com aceitação de dupla grafia, até 31 de Dezembro de 2016. E que, se até essa altura não existir um “acordo comummente aceite e uma proposta de vocabulário ortográfico comum”, então que Portugal se desvincule do acordo.

A proposta do Bloco prevê que o Parlamento recomende ao Governo que faça a “revisão técnica” do acordo. O que para José Ribeiro e Castro, por exemplo, “passaria a ideia de que a Assembleia da República é contra o acordo, quando a sua função deve ser apenas a de alertar para a necessidade de cumprir o processo de aplicação como ele foi traçado”.

Está agendada ainda a discussão da petição pela “desvinculação de Portugal ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990”, que conta já com 18 mil assinaturas. Ivo Barroso, um dos primeiros subscritores, disse ao PÚBLICO que não tenciona estar presente por se sentir “desiludido” por os partidos não terem acolhido o assunto e continuarem a permitir o “caos ortográfico” que se instalou na língua portuguesa.

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