A cultura de direita

Há algumas semanas, o jurista e historiador António Araújo publicou no seu blogue, Malomil, um ensaio sobre A cultura de direita em Portugal. O corpus da “cultura de direita” aí seleccionado e analisado situa-se exclusivamente no pós-25 de Abril e faz parte, inteiramente, da cultura popular urbana, jornalística e, de um modo geral, frívola. Mesmo um Agostinho da Silva — referido de passagem — surge enquanto fenómeno mediático. Devemos concluir que autor do ensaio não encontrou exemplos da “cultura de direita” na nossa cultura erudita. E não é fácil encontrá-los. Mas talvez haja alguns vestígios: veja-se, por exemplo, uma recente edição da Mensagem, de Fernando Pessoa, comentada por Paulo Borges, e sigamos-lhe o rasto e a constelação de que faz parte. Mas o autor deste interessante ensaio não define à partida o que é uma “cultura de direita”, fazendo-a coincidir de maneira um pouco automática com a direita política. Uma tal definição talvez tornasse mais difícil a inclusão da revista Kapa (fundada em 1990 tendo como director Miguel Esteves Cardoso) nessa cultura de direita; e talvez permitisse encontrar elementos da cultura de direita em criações artísticas e intelectuais vindas de sectores da esquerda (dou apenas um exemplo: um poeta como Manuel Alegre, que é de esquerda, tem uma concepção da poesia e da figura do poeta nitidamente de direita). O que é uma cultura de direita? Furio Jesi, germanista italiano e um dos maiores mitólogos do século XX, autor de um livro intitulado Cultura di destra (1979), definiu a cultura de direita como aquela que tem como modelo uma “máquina mitológica”, um dispositivo que fabrica mitologemas, narrativas sobre o passado, fazendo dele “uma amálgama que se pode modelar”. É — diz Jesi recorrendo a Oswald Spengler — a linguagem das ideias sem palavras (Spengler: “A única coisa que permite a solidez do futuro é aquela herança dos nossos pais que temos no sangue: ideias sem palavras”). Jesi analisou sobretudo uma tradição alemã e italiana. Se quisermos procurar uma tradição portuguesa da cultura de direita não encontramos um Bachofen, nem um Ludwig Klages, nem um Julius Evola, nem um D’Annunzio. Nem sequer a concepção do poeta como vate de Manuel Alegre é comparável ao Dichter de Stefan George. E quanto mais nos aproximamos do nosso tempo, mais difícil é definir uma cultura de direita porque ela tende a ser, como a de esquerda, um realismo, e a sua doutrina fundamental consiste numa adesão ao individualismo liberal. A cultura de direita converteu-se ao pragmatismo económico e, no essencial, fala uma linguagem que, aliás, a esquerda não consegue ultrapassar, nem se esforça por isso. Em suma, abandonou completamente os livros e as bibliotecas e instalou-se nas televisões, nos jornais, nos ministérios e nos escritórios. Por isso, quando lemos uma entrevista como a que Anabela Mota Ribeiro fez na 2, a revista do PÚBLICO, no passado domingo, a um jovem casal de “católicos de direita”, como são apresentados Eduardo Nogueira Pinto e Helena Nogueira Pinto, tendemos a procurar nela as manifestações intelectuais de uma “cultura de direita”. E o que encontramos? Exactamente a persistência das “ideias sem palavras”: o louvor da ordem e da moral familiar; o romantismo político. O que, sem mais, se reduz a uma pobre manifestação da cultura de direita. Mas devemos compreender que a tradição portuguesa não lhes deu grandes figuras de invocação. Em Portugal, mais do que uma cultura de direita, o que temos são famílias de direita. Isto é: muito sangue e pouca cultura.  
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