Viagem pela ideia da crise

Não sei há quantos anos ouço falar de crise — a ideológica, a religiosa, a sentimental, a artística, a literária; e também a social, a económica, a financeira, a laboral, a política, a mundial ou a universal. Uma crise sem paredes que circula entre todos os espaços em branco – esta espécie invasora que já não se detém no limiar de nenhuma fronteira; que não precisa de passaporte nem de santo e senha para entrar, insinuar-se, insurgir-se e instalar-se sentada no meio de nós, ou erguida no pavor sombrio dos nossos sonhos, na roupa, na pele, na alma (para quem ainda a possua ou nela creia, obviamente!).

Nenhuma ideia de felicidade nos pertence (seria no mínimo ridículo que um escritor ousasse confessar-se uma pessoa feliz). Nascemos portugueses, mas para sobreviver a um permanente e absoluto estado de crise, em Portugal. Aqui mesmo ao lado, em Paris, a cidade do exílio e dos mitos ideológicos de outrora, Jean-Paul Sartre morreu com as mesmas dúvidas que o levaram a inventar uma teoria para a angústia do homem moderno, à qual chamou "existencialismo". Para mim, a única e verdadeira crise dá pelo nome de hiperidentidade — ao mesmo tempo individual e colectiva. Assistem-me portanto o direito e o dever de a invocar. Não sei que fazer de mim, do meu excesso de identidade. Sei muito bem quem sou, mas ignoro a minha missão e não sei em que morada deixei esquecida a chave do meu próximo destino.

Nenhuma possibilidade de se ser feliz em Portugal? Seja pelo facto de nada de bom ou de extremamente mau nos acontecer, seja porque em Portugal simplesmente já não acontece nada. Falamos pouco, mas ouvimos muito. Come-se mal, bebe-se melhor. O resto é uma chaga, uma deriva, um sentimento de que nada aqui nos pertence. Não sei quem veio de fora, nem por que motivo as coisas deixaram de ser nossas — mas voga por aí uma presença estranha, o rosto invisível e absoluto de um qualquer ocupante estrangeiro. Ele mudou o nome das coisas e a precisão doméstica dos nossos sítios. Tomou conta dos lugares públicos. Aquartelou-se nas casas, nas tribunas e nos templos. E agora impõe-nos uma ordem social e espiritual que nunca foi nossa: ou seja, uma religião sem princípios, a confraria da imoralidade, o coro, as matinas, as vésperas de um convento para as almas. E uma sabatina histórica que não nos deixa regras nem palavras. Mas se de facto não acontece nada, tudo porém se vai fazendo em nome de uma imensa maioria silenciosa, a mesma que dá sustento e legitimidade aos diques de que é feita a conjura, digo, a conjuntura do medo e do regime.

Hoje, em Portugal, é Deus quem parte e reparte com o Diabo, ficando este com a melhor parte. São populares e risonhos os amanuenses e os ditadores do país onde já não acontece nada. Basta-nos, para que isto ainda exista, haver lá no alto um cardeal primeiro-ministro, alguns bispos e curas nos ministérios e uns quantos noviços por secretários de Estado – mantendo-se assim a nossa ilusão acerca da existência do país. Bastam-lhe os lugares sentados no Parlamento e um talentoso orador a gritar ao povo; bastam-lhe dois escritores e meio para falar por todos; doze actores de teatro e cinema, dez polícias e um general, um maestro de batuta erguida ante as cinquenta e duas cabeças de uma orquestra, zero vírgula um arrependidos políticos confessos, dois vírgula zero seis professores e sindicalistas, três médicos e meio engenheiro, um cantor de fados e treze guarda-costas, um agricultor e oito industriais, um futebolista e três quartos de outro, um careca idoso e outro careca que ainda exibe o cartão jovem ou o título de novo empreendedor — e fica completo o comício.

Não posso nem devo queixar-me de um país que já não existe. Lamento tudo aquilo que aqui me cerca: este território de ocupação e de gente possuída, este novo “silêncio do mar” de que falou um dia o proscrito Vercors, e o tempo de agora que parece eterno enquanto dura, como diria o poeta Vinícius; o tempo em que, em silêncio oficial, vão morrendo (indignados, desgostosos) mulheres e homens de cultura, gente honrada que assistiu à nova invasão dos Hunos e à sua barbárie e que ainda assim permaneceu honrada. Vão-se os homens desta terra que em tudo deixou de valer a pena desde que sua alma se fez pequena. Vão-se os anéis e os dedos, os pomares e as vinhas, as searas de trigo e os pinhos, os pássaros e o milho — e calam-se pouco a pouco as vozes e os sinos. Já tudo foi dito e escrito, ó André Gide; mas, visto que a memória é tão breve, deve-se escrever e dizer tudo de novo. E aprender no vento os nomes de tudo aquilo que agora é e que dantes não estava aqui. Havia a agricultura e os campos, o canto e a lida (Fernando Pessoa), a poesia e o sonho, os barcos, as veredas e as sombras. Havia algo por que ainda fosse possível e preciso gritar. Não este silêncio e este sepulcro, nem este desmazelo prepotente, nem esta arte de que usam e abusam eles, os ocupantes, para nos fazerem calar a boca e ter paciência. O caso é que eu aprendi a revolução e a história na escola primária. Vivi-as no gesto largo dos heróis, colhi-as como as flores do mal e do vinho em Baudelaire. Não vim para assistir a isto de chegar uma gente sem idade nem memória de nada e obrigar-me a crer que tudo aquilo que vivi e amei não passou afinal de uma ficção ou de uma mentira. No meu tempo, havia livros escritos só para que os comessem os subalimentados do sonho, ó Natália Correia, e não esta gente que nos vira a cara, que cospe para o lado e diz entre dentes que a cultura é cega surda e muda como a pedra, como a “mula da cooperativa” (canção da ilha da Madeira, onde também vibram e morrem alguns dos sonhos que nos foram comuns).

Uma breve história de logros. A história súbita, devassada e oprimida dos meus logros portugueses. De pouco adianta escrevê-la: ninguém ma leria, querido Eça de Queirós. Não devo sequer contá-la: não há quem ouça. Fosse eu um príncipe com orelhas de burro (ou burro com orelhas de príncipe) e com mãos ou patas abriria a terra, a única confidente portuguesa, para a ela contar a longa relação dos logros lusitanos. Quem sou eu, porém, para duvidar da evidência e mesmo da certeza, da versão oficial e do comunicado semanal do conselho de ministros, das notícias do bloqueio e daquele que foi eleito para não ter dúvidas — no país onde já um dia vi passar ciências sociais e humanas como a Filosofia, a Geografia, a Historiografia, a Literatura, a História Universal da Infâmia, Jorge Luis Borges, a ditadura, a guerra colonial, o golpe de estado, a revolução; neste mesmo país onde hoje já não se é nem se está vivo pelos próprios meios da inteligência e da vontade; onde pouco ou nada vale a pena, e cuja consciência nos dói – mas onde já nem a consciência disso vale a pena ou a paixão?

 A crise é uma viagem pelo tempo acima – e esta a minha crónica dela. Penso-a e vivo-a com palavras. As sempre belas e amadas palavras. Amo-as tanto como às mulheres e às nuvens brancas que pairam sobre o azul plano e luminoso do mar. Porque eu gosto dos amores secretos que também a mim me escondem da evidência em pleno campo de batalha. Mas a minha guerra não defende o rei. Armei-me contra a crise que levou daqui a alma e trouxe consigo o exército estrangeiro. Atacar o ocupante, mandar prender o rei e o eleito na ilha mais distante de todas as ilhas, fora do coração do povo, para que um e outro vejam e provem deste mesmo exílio; e morram ambos, como nós morremos, do nosso desgosto de sabermos quem somos – e afinal termos perdido o navio do regresso a casa, à terra dos nossos pais, ao mar que um dia já foi só nosso e agora, definitivamente, não nos pertence. 

Escritor

Comunicação para o encontro literário Correntes d' Escritas 2014.

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