Muhammad Ali: o início da lenda

Há 50 anos, o homem que ficaria para a história como Muhammad Ali conquistou o seu primeiro título de pesados.

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A 25 de Fevereiro de 1964, ninguém acreditava que Cassius Marcellus Clay Jr. tivesse alguma hipótese no combate pelo título mundial de pesados contra o “monstro” Sonny Liston. Era um pugilista promissor, campeão olímpico nos Jogos de Roma, com um registo interessante como profissional, mas Clay era, sobretudo, visto como um fala-barato que seria derrubado facilmente por Liston. Por isso, o Convention Hall, em Miami, não estava cheio. Era um combate para o qual não valia a pena comprar bilhete. Sete assaltos depois, não voltariam a subestimá-lo desta maneira.

Naquele dia em Miami, iria começar a lenda do homem que ficaria conhecido na história como Muhammad Ali, o melhor pugilista de todos os tempos. Mas ainda como Cassius Clay, o jovem desbocado de 22 anos que dizia que voava como uma borboleta. Nos anos seguintes, seriam os outros a ter medo dele, antes daquele combate era Clay quem estava assustado. “Não vou mentir. Estava cheio de medo. Ele batia com muita força e estava empenhado em matar-me. Mas eu estava ali e não tinha escolha senão combater”, contou mais tarde Ali/Clay.

A questão seria quantos assaltos é que seria precisos para a inevitável vitória de Liston, por quantos minutos é que Ali iria conseguir esquivar-se da poderosa esquerda de Liston, um homem que tinha aprendido a lutar na prisão e cuja carreira era gerida por um “capo” da máfia. Nos 17 meses anteriores ao combate de Miami, Liston tinha conquistado o título a Floyd Patterson, num combate que durou apenas 2m05s, e tinha confirmado o seu estatuto num “rematch” com Patterson em 2m09s em Julho de 1963 – levou Patterson três vezes ao tapete antes da vitória por KO.

Clay tinha medo, mas não o mostrava. Todas as suas intervenções pré-combate eram insolentes, desafiadoras, desrespeitosas para o adversário. O jovem pugilista não conseguia ficar calado, tudo o que ele dizia era um soundbyte. “Estou pronto para a guerra. Se vir o Sonny na rua, dou-lhe uma tareia, como se fosse o pai dele. Ele é muito feio para ser campeão. O campeão devia ser bonito, como eu”, foi uma das muitas frases pré-combate de Clay, que recebia os Beatles no ginásio onde treinava e invadia o local de treinos de Liston para o provocar.

No dia do combate (disponível no Youtube) estavam 8297 pessoas no recinto. “100 por cento das pessoas vão lá para me ver, 99,9 por cento vão lá para me ver levar uma tareia”, dizia Clay. Começa o primeiro assalto. Clay “voava como uma borboleta” no ringue, nunca estava parado, aos saltos e em movimento, Liston era mais estático, reactivo, à espera do momento certo. Ao terceiro assalto, Clay intensifica os seus ataques começa a deixar marcas no rosto do campeão.

No assalto seguinte, Clay resguarda-se, mas, quando volta para o seu canto, queixa-se de que não consegue ver e está disposto a desistir. Angelo Dundee, o “manager”, limpa-lhe os olhos, mas Clay regressa ao combate quase cego – há quem diga que Liston tinha colocado uma susbstância nas luvas para limitar a visão do seu adversário. Quando volta a ver com clareza ao sexto “round”, Clay reassume o controlo do combate e, quando Liston, lesionado no ombro esquerdo, já não se consegue levantar para o sétimo, Clay é declarado vencedor por KO por abandono do adversário. E grita, pela primeira vez com propriedade: “Sou o maior!”

Acabava de nascer a lenda. No dia seguinte ao combate, Clay anunciou publicamente que já não era cristão. Dois dias depois, fazia nova declaração pública apresentando-se como membro da Nação do Islão, um grupo religioso fundado em Detroit, nos EUA, na altura considerado um grupo que promovia o ódio racial. Alguns dias mais tarde, Cassius Clay renunciava ao que entendia ser o seu “nome de escravo” e abraçava um nome “com significado espiritual” pelo qual iria ficar na história do desporto: Muhammad Ali.

Mas a história de Ali/Clay e Liston ainda não tinha acabado. Estava contratualizado que os dois ainda teriam de se voltar a defrontar. A primeira data marcada era 16 de Novembro de 1964, mas Ali teve de ser operado de urgência a uma hérnia e o combate foi adiado para 25 de Maio do ano seguinte, em Lewinston, uma pequena cidade do Maine. Liston ainda era dado como favorito pelos apostadores. O desfecho seria o mesmo num combate mais curto (Youtube) que o primeiro, mas a polémica seria grande e nunca totalmente resolvida até hoje.

Nunca tão pouca gente tinha assistido a um combate pelo título de pesados. Apenas 2434 pessoas estavam no pequeno recinto e ainda nem todas se tinham sentado quando Ali era dado vencedor por KO ao primeiro assalto. Liston não demora muito a ir ao tapete e Ali não vai para o seu canto. Fica no meio do ringue a gritar com o seu adversário para que este se levantasse. Liston ainda se levanta, mas o combate acaba pouco depois.

Parecia demasiado fácil, Liston não parecia suficientemente massacrado para uma derrota tão estrondosa. Na verdade, a direita de Ali que provoca a queda de Liston parece não atingir o alvo. O golpe ficaria conhecido na história do boxe como o “soco fantasma” e levantou muitas suspeitas sobre se o combate tinha sido combinado, se Liston teria perdido de propósito para poder apostar em Ali e pagar dívidas à máfia (há outras teorias). O que aconteceu naquele combate no Maine ainda hoje é discutido, e Liston, o homem que aprendeu a ser pugilista na prisão, nunca mais voltou à ribalta. Quanto a Cassius Clay, o fala-barato de Louisville, já era Ali. E assim continuaria.
 

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