Chamamento à alegria

Portugal atravessa uma hora indecisa, cinzenta, crepuscular, do seu destino. Será o crepúsculo que precede o dia e a vida, ou o crepúsculo que precede a noite e a morte? Não sei, não sei, não sei...” Carta de Manuel Laranjeira a Miguel de Unanumo, datada de 1908, quatro anos antes do suicídio daquele em 22 de Fevereiro de 1912

Não me ensinaram a alegria.

Ensinaram-me a responsabilidade, a solidariedade fraterna e a verticalidade da ética, o valor do esforço e do trabalho intenso; ensinaram-me a não desistir, e até a procurar soluções criativas para as inevitabilidades mais complexas da vida; ensinaram-me mesmo a fazer frente, ainda que pacificamente, a destruidores da dignidade humana.

Mas não me ensinaram a alegria.

Uma responsabilidade pesarosa e triste, ou uma solidariedade anónima de emoções, sem verdadeira alma, perdem pelo menos metade do seu valor.

O tom imperativo das desgraças económicas, sociais e políticas, e a sua presença constante nos media, converte-nos em desolados cidadãos. Na “estratégia do mal-estar” deste nosso cosmos marcado pela Joyless Economy, a alegria não encaixa; o júbilo, a celebração, a festa, a gargalhada, são corpos estranhos, perturbadores, fontes de desconfiança, ou surgem apenas associados à publicidade e ao consumo (quantos são os jovens que hoje bebem para se alegrar e tornar leve a vida?).

Nesta economia sem alegria, a proposta de alguns especialistas, como Tibor Scitovsky, é a de que nos eduquemos para formas de consumo (consumo de bens de estimulação, como uma bela paisagem, ou de bens relacionais, como um jantar com amigos) que nos estimulam e trazem sentido à existência, e para formas sociais em que o desafio, o risco e o sentido de meta atingida – elementos da alegria – se sobreponham ao consumo de bens de conforto e de segurança (que nos saciam momentaneamente, mas a que logo nos adaptamos, experimentando um prazer temporário que se esvai e nos esvazia).

Nas escolhas das atuais sociedades desenvolvidas os lugares da realidade comum asfixiam-nos a vontade, e trucidam a coragem de viver na jovialidade, esse impulso quase desavergonhado.

A alegria tornou-se assim num estado de exceção permanente. Está nas margens da vida. Inquilinos de subsistências sem exaltação, desfiguradas, os alegres são como elefantes de cores nas praças das cidades, que se passeiam entre destroços. São acusados de silenciar a denúncia. São peste social. Como me disse um dia uma jornalista, uma boa noticia é a que acusa; a que soluciona é vã e fútil.

A alegria aparece assim colada com a impossibilidade de ser crítico e transformador. Os alegres são tidos como demasiado brandos e ligeiros para terem a profundidade necessária para perceber o que é realmente relevante, ou se revoltarem ou revolucionarem as vidinhas. São considerados uns apregoadores dóceis, com uma prática de vida vazia, kitsh ou demasiado arriscada e potencialmente  alienadora.  São vistos como uns petulantes, superficiais e altivos, fugitivos e incapazes de lutar contra a essência do sofrimento; em alternativa, são vistos como loucos insensatos, optimistas irrealistas e demasiado autoconfiantes quando arriscam.

Dizia Theodor Adorno que divertir-se significa sempre que não há lugar ao pensamento, mas sim ao esquecimento da dor (quantos adolescentes me têm confidenciado que se auto-mutilam para diminuir a intensidade da sua dor psicológica? Isso sim, aprenderam da nossa cultura...).

Desolados aqueles que acreditam nesta antinomia, que creem nesta inevitável clivagem dicotómica entre o ato de transformar e o de se regozijar! A vida humana é bem mais complexa que o que encerra esta abstração polarizada de se ser ou generativo, acusador e cinzento, ou alegre, frívolo e imprudentemente aventureiro. Poucos acreditam em Portugal que a alegria e a crítica ativa ao instituído podem entender-se, coexistir e transubstanciar-se.

Não deveria a alegria ser uma experiência vital? Conseguem imaginar visionários tristes, empreendedores desanimados? Que contornos terá a grande aventura da vida fora da celebração, da aspiração à exultação e ao deleite, à jovialidade e à graça, transcendendo as circunstâncias para as conseguir exceder?

Talvez a alegria seja um estado de puro ser, e isso assusta os mais circunspectos e graves, conservadores e cautelosos, que não arriscam perder nada, muito menos a face.

Assim vamos deixando que a sombra e o peso da vida avancem como num rápido pôr do sol, tudo obscurecendo. O ressentimento, o desânimo, a rivalidade, a intenção vingativa, o julgamento rápido, o medo, a desconfiança face ao outro corrupto ou ao futuro a inventar, levaram à decadência da alegria.

Até na investigação científica a alegria é das emoções menos estudadas.

Diz-nos George Vaillant (2008), na sabedoria refletida da sua anciania e da experiência de coordenar o estudo longitudinal mais longo da história da Universidade de Harvard, que há alegria em ser liberto do cativeiro, em ganhar algo bom que se julgou perdido, em apreciar os pequenos milagres diários da vida.

David Cooperrider, num livro recentemente publicado, refere que questionar é viver num estado de não respostas, de romance com o mistério da descoberta. Assim, pergunto-me: e se estiverem enganados todos os sisudos implacáveis, e a alegria for a fundamental condição de rebelião – contra o mal e o cortejo de sofrimentos, tantas vezes insensatos e evitáveis, contra todas as crueldades e maldições que nos provocamos uns aos outros, quando nos permitimos a indiferença, a violência, a pobreza e a indignidade?

Alegrarmo-nos não é, não pode ser, uma ideia reguladora ou um programa de desistência da luta, de qualquer luta nobre por melhores e mais dignos presentes e futuros, nem uma forma de fuga da realidade má, mas sim o último sentimento de resistência. Alegrarmo-nos será fugir das pequenas mortes diárias, dos demónios que nos impomos e nos impõem – arriscando consumir de outra maneira, experimentar fazer e ser diferente.

Aspiremos à alegria dos comovidos para deixarmos de ser náufragos de vidas que desdenhamos. Uma alegria conseguida e repartida pode salvar-nos. Na alegria somos menos “outros”, e sentir-nos-emos mais filhos da mesma madrugada libertadora. Não idênticos, sempre singulares, mas sublimes no cara a cara de um sorriso verdadeiro, de uma gargalhada uníssona, de uma vitória partilhada, de uma solução conseguida ou de um amoroso abraço intenso. Invejemos quem tem a gargalhada solta, irreverente, salutar, virulenta. Quem usa a alegria como combustível para a vida; quem se desmarca pelo entusiasmo decidido com que agarra os colarinhos da vida diária, mesmo e precisamente quando ela é canalha e arrasta pelo chão duro e frio da doença, da morte ou da injustiça.

Numa cultura historicamente desanimada, tão preocupada com as aparências, e nem sempre com a verdadeira essência das coisas, é tempo de lavrar a alegria, o entusiasmo, a celebração das pequenas-grandes coisas, o desafio do risco e do riso. Talvez assim nos comprometamos mais com a vida, e renunciemos ao insensato e persistente dualismo de, ou transformar, ou regozijar. A tristeza esteve sempre aí, na vida portuguesa, como nos indica Manuel Laranjeira há mais de um século, e na vida do mundo, como nos mostram as dolorosas lembranças dos horrores criados pelos humanos ao colonizar, defender a eugenia, ou instaurar a guerra incivil. Às vezes sórdidos, muitas vezes imperfeitos, quem sabe aliviemos o peso da vida com um horizonte de júbilo comum.

Porque a mim não me ensinaram a alegria, espero que saibamos ensiná-la agora aos jovens, aos líderes futuros, às crianças. Estas, trazendo em si o potencial de celebração, estão a desistir da festa da vida (há algum tempo atrás, um menino de seis anos, com ar ansioso e olhos decaídos pela tristeza de um futuro que lhe dizem incerto, dizia-me que tinha medo de não ter emprego quando crescesse...).  

Não advogo o viver da vida como uma permanente diversão, um parque infantil frenético, ou uma existência onde o sofrimento apareça como inútil, mascarado, indesejável ou escondido, até porque todos carregamos algo de sombrio. Não proponho – nunca o faria – doutrinação. Reconheço que entre o interminável e tedioso culto do negativo, se extrema muitas vezes um positivo acrítico e frágil. No entanto, não podemos negar espaço a um alegria possível, a uma epifania vital, a outras formas de amotinação e de construção do quotidiano.

Uma saída possível nesta educação da alegria vem pela forma como hoje através dos media contamos a história do nosso mundo Por isso celebro, em alegria, a recente iniciativa da criação do Centre for Constructive Journalism na Dinamarca, dedicado ao sonho de desenvolver um jornalismo de confiança, comprometido e de qualidade, que traga lealdade e valor à vida das pessoas. Influenciado pela psicologia positiva, com o apoio de um professor universitário que é atualmente o presidente da Rede Europeia de Psicologia Positiva, Hans Knoop, e docente no nosso Executive Master em Psicologia Positiva Aplicada, do ISCSP da Universidade de Lisboa,  o centro e a formação que ministra são dedicados a um jornalismo que convida à partilha de soluções, mais do que a produtos jornalísticos e mediáticos estafados por debates vazios, tristes e ineptos, tão comuns, porque tão mais fáceis.

Sim, se calhar não é quimérico ensinar hoje a alegria, para que o crepúsculo anteceda à vida. Devemos isso a Manuel Laranjeira, cujo suicídio se relembra no dia em que escrevo este texto, e a todos os intelectuais, artistas e ativistas que em Portugal se suicidaram, emigraram ou de alguma forma desistiram, desabitados de alegria.

Que não me tomem de assalto nem destruam a alegria que fui construindo braço-a-braço em mim, por necessidade e vontade; que não ma roubem, que não ma amesquinhem, nem me humilhem ao mostrá-la. A mim, ou a nenhum português que arrisque alegrar-se.

Desejo que se Miguel de Unamuno abrisse hoje um jornal nacional não comentasse, como o fez ao ler um par de diários portugueses em 1908, “Estes são artigos que respiram morte”, desejo que saibamos honrar a história transformando-a, e em cada momento atuar, imbuídos da vivacidade de uma alegria profunda e sempre lúcida.

Como dizia o Nobel da Literatura Rabindranath Tagore, “Adormeci e sonhei que a vida era alegria. Acordei e vi que a vida era serviço. Agi e vi que o serviço era alegria.“

Helena Marujo é professora universitária no ISCSP/UTL. A autora escreve ao abrigo do acordo ortográfico.

Fontes:
Cooperrider, D. (2014). Making change easy. The tiniest Appreciative Inquiry Summit in the World. Acedido em 22 de  Fevereiro de 2014 de http://www.axiomnews.ca/sites/default/files/Making%20Change%20Easy.pdf

Reggiani, T. (2008). Book Review to Tibor Scitovsky - "The Joyless Economy" (1976). Publicado em Aggiornamenti Sociali, vol. 01/2008 , Vol. Aggior, No. January, pp. 69-71.

Vaillant, G. (2008). Spiritual Evolution: A Scientific Defense of Faith, pp. 119-134. New York: Broadway Books.

Unamuno, M. (2006). Por tierras de Portugal y de España. Barcelona: Biblioteca Unamuno, Alianza Editorial.

http://positivenews.org.uk/2014/culture/media/14683/centre-constructive-journalism-launch-year/

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