As palhaçadas parlamentares

As comemorações do 25 de Abril de 1974 pela AR não auguram nada de bom...

O Parlamento é a casa da democracia. Sem dúvida nenhuma. Mas às vezes parece ser também a casa de gente muito pouco recomendável e de práticas muito pouco saudáveis, nomeadamente, para a democracia. O referendo à co-adopção por casais homossexuais, que foi na passada quarta-feira considerado inconstitucional pelo Tribunal Constitucional, é um bom exemplo disso.

Todos se lembram da história: no decorrer de um processo legislativo que já ia numa fase adiantada e que tinha em vista a aprovação de uma lei que iria permitir resolver e evitar um pequeno número de injustiças – mas ainda assim, injustiças – um conjunto de deputados, em representação dos que não conseguem aceitar a humanidade da homossexualidade, adoptou a táctica da “golpada” com a desculpa demagógica da necessidade de saber a opinião do povo sobre o assunto.

Para o efeito surgiu um jovem deputado a proferir as maiores inanidades, com a satisfação de quem, finalmente, tem os seus 15 minutos de fama e que sabe que se está a sacrificar perante a opinião pública, mas com a esperança de um dia ser recompensado pelo partido. Os mandantes, esses, nunca se assumiram, mas toda a gente percebeu que foi uma estratégia congeminada ao mais alto nível do principal partido do Governo. Lembre-se que, na hora da votação, foi imposta a disciplina partidária, apesar de esta ser evidentemente uma matéria do foro da  consciência. E os deputados do PSD obedeceram, salvo algumas excepções, mostrando alguns serem, notoriamente, gente muito pouco recomendável. E sublinhe-se o facto de nem os deputados do outro partido da coligação governamental terem aprovado a proposta de referendo, tal o baixo nível da “jogada”.

Felizmente, a ganância golpista foi tal que não resistiram a colocar na proposta de referendo uma segunda pergunta. E foi, em parte, por essa excitação inquisitória que o Tribunal Constitucional declarou a inconstitucionalidade da proposta. Por isso e pelo facto de a proposta restringir o universo eleitoral aos cidadãos eleitores recenseados no território nacional, excluindo os que residem no estrangeiro. Como é evidente, esta pequena vitória do bom senso constitucional nada garante quanto ao futuro nesta matéria, mas tem a inegável vantagem de nos mostrar que a esperteza saloia e sem princípios nem sempre ganha. Pelo menos, à primeira.

Mas há mais exemplos recentes do carácter lamentável da prática parlamentar. Como é o caso  do espectáculo verdadeiramente deprimente das comemorações dos 40 anos do 25 Abril. Não sou grande partidário de comemorações, homenagens, romarias e outras encenações públicas. Geralmente, são uma seca. Mas, de vez em quando, há actos, datas ou pessoas que são a excepção que justifica a regra. Há, por vezes, rituais que contribuem para uma vida individual e colectiva mais rica.

O 25 de Abril de 1974 é uma data importante na nossa história contemporânea. Internamente, permitiu-nos recuperar a dignidade enquanto pessoas e cidadãos, de que estávamos há muito privados. Acabou com o humilhante estatuto de menoridade intelectual e cívica que nos era imposto a todos. E que só não era sinistro para aqueles que faziam parte do poder ou para aqueles que não gostavam de pensar e falar, antes preferindo obedecer e calar.

Externamente, corridos que fomos das colónias, pudemos voltar a ocupar um lugar no concerto das nações. Não que isso seja particularmente abonatório se, por exemplo, nos lembrarmos que a Líbia de Kadhafi esteve à frente da Comissão dos Direitos Humanos das Nações Unidas. Mas ainda assim foi saudável.

A Assembleia da República enquanto realidade política, o multipartidarismo, as eleições livres e a liberdade de expressão são consequências directas do movimento militar que, em 25 de Abril de 1974, derrubou o regime tacanho e perverso que esteve instalado no nosso país durante décadas. Felizmente muitos dos portugueses de hoje não conheceram ao vivo essa triste realidade. Mas a Assembleia da República, enquanto instituição e independentemente da juventude dos seus deputados, nunca deverá ignorar esse salto qualitativo que está na génese da sua existência. Por tudo isto, as comemorações dos 40 anos do 25 de Abril na Assembleia da República – porque é um número redondo, com um  sabor a patamar cronológico – deviam ser algo de digno, criativo, e, quiçá, alegre.

Infelizmente as trapalhadas que têm vindo a público levam-me a pensar que teria sido melhor termos tido um programa cautelar para tratar destas comemorações. Que viessem umas quaisquer entidades estrangeiras explicar à Assembleia da República como se fazem estas coisas. Como se planeiam com antecedência. Como se estabelecem os consensos necessários. Como se arranja, se for preciso, dinheiro e voluntários para as fazer.

Infelizmente, agora, a pouco mais de dois meses, já parece tarde.

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