Entre o erro da inteligência e o erro da mediocridade

Resulta bem claro da leitura da entrevista de Vítor Gaspar a Maria João Avillez que há um antes e um depois da crise do Verão passado.

“O mercado político não é mais do que o local onde se trocam votos por promessas de intervenções públicas.” Esta frase, pronunciada a 9 de Junho de 1979 no âmbito de um debate promovido pelo semanário francês L’Express, é da autoria de um economista liberal, Jean-Jacques Rosa. Uma posição desta natureza inscreve-se numa representação doutrinária pouco complacente com as práticas democráticas e hostil à ideia de autonomia plena do fenómeno político.

Para esta corrente de pensamento a noção de mercado constitui o elemento central de explicação do funcionamento das instituições políticas e sociais. Em lugar de se restringir à esfera estritamente económica, tal conceito é projectado para um plano mais geral, apresentando-se como uma alternativa bem-sucedida às teorias contratualistas associadas à predominância das dimensões política e jurídica. De alguma forma esta visão apolítica que caracteriza o pensamento económico liberal aproxima-o, sem obviamente o identificar, de alguns aspectos centrais do pensamento marxista. Ambos assentam no pressuposto de uma prioridade da dimensão económica, quer na perspectiva de explicação da realidade histórica, quer no âmbito do esforço de compreensão da própria realidade antropológica. Realçando embora as significativas divergências que afastam estas duas linhas de orientação doutrinária, haverá que reconhecer esta importante coincidência no que concerne à avaliação da dimensão política. Não é essa, porém, a questão que me importa agora salientar. Se citei Jean-Jacques Rosa, e a partir dessa citação evoquei um aspecto determinante do pensamento liberal, não o fiz com a intenção de valorizar as suas coincidências com outras linhas de orientação doutrinária, mas antes por uma razão mais simples: acabei de ler a entrevista que Vítor Gaspar concedeu a Maria João Avillez e que foi publicada sob a forma de livro.

A iniciativa em si mesma merece ser saudada. Maria João Avillez, a quem devemos alguns dos mais interessantes textos produzidos pelo jornalismo português das últimas décadas, conduz com subtileza o antigo ministro das Finanças pelos labirintos da sua vida pública e da sua inteligência. O resultado revela-se deveras interessante. Permite, desde logo, aceder à parcial compreensão de fragmentos relevantes da nossa história nacional recente, revela a complexidade de uma personalidade onde se associam a busca de uma racionalidade pura e a explanação de contradições intelectuais humanizantes e não deixa de apontar para as insuficiências da presente solução governativa.

Voltemos a Jean-Jacques Rosa. Lembrei-me dele ao ler as considerações que Vítor Gaspar formula acerca de Paulo Portas. Há nelas um misto criterioso de sinceridade e de cinismo indiciadores de uma apreciação moral pouco abonatória e reveladores de uma incompreensão intelectual preocupante. Paulo Portas aparece como uma espécie de arquétipo absoluto do mundo político, mundo esse que notoriamente escapa à capacidade de entendimento mais profundo de Vítor Gaspar. Essa incapacidade não decorre como é óbvio de qualquer tipo de insuficiência intelectual, imprópria de um homem que se caracteriza justamente pelo contrário, antes resulta de uma visão do mundo onde a política é remetida para um plano subsidiário da pura lógica do mercado. Nesse sentido, o político puro acaba por ser visto como um mercador de ilusões, com tudo o que isso comporta de irracionalidade e de atentado a uma normalidade que a lógica da concorrência económica garantiria. Não será por acaso que os seguidores deste modelo de pensamento invectivam o papel do Estado, já que o vêem como uma presa dos projectos “empresariais” de políticos exclusivamente preocupados com a reprodução ou a manutenção do seu capital, que consiste na sua expressão eleitoral. Quando Vítor Gaspar reconhece a importância da política, é justamente para salientar o seu efeito corrosivo nos equilíbrios que uma certa espontaneidade económica, assente na obediência a um paradigma de racionalidade pura, garantiria. Repare-se que em nenhum momento ocorre ao antigo ministro das Finanças que o que impelia Paulo Portas a actuar como actuou na crise política do ano passado podia decorrer da sua recente filiação democrata-cristã. Para Gaspar, o episódio Portas resume-se a uma explicação simples: não existe projecto, escasseia o rigor, prepondera a vontade de fidelização eleitoral de alguns segmentos sociais específicos. Infelizmente, neste caso concreto assistir-lhe-á uma boa dose de razão. Só que isso não deve afastar-nos do essencial. Esta teoria da democracia assente no princípio explicativo do mercado empobrece a qualidade do debate público e não concorre para a plena compreensão da nossa realidade presente.

Para além disso, ao longo da entrevista vislumbram-se interessantes contradições no pensamento do entrevistado. Tanto se declara profundamente influenciado por Hayeck, como proclama a sua opção pela social-democracia e pela valorização de um Estado social. Afirma ao mesmo tempo a sua adesão a pensadores tão diferentes como Isaiah Berlin e Michel Foucault. Curiosamente essas contradições produzem o efeito de realçar a complexidade de uma personalidade que marcou os últimos tempos da nossa vida pública. Nessa perspectiva, Gaspar está a anos-luz de distância da vulgaridade que se tem vindo a acentuar no debate político português. Basta, aliás, atentar na forma como ele responde a algumas das perguntas potencialmente mais embaraçosas, constantes do presente livro, para perceber isso mesmo.

Por último, resulta bem claro da leitura desta entrevista, mau grado a assinalável preocupação em não enveredar pelo discurso maledicente, que há um antes e um depois da crise do Verão passado. Até então prevalecia uma obsessão programática que tinha fundamento, horizonte e sentido. Estava errada, a meu ver, pela razão simples de descurar uma rigorosa avaliação da realidade. Agora o que subsiste é outra coisa: um discurso que vagueia entre a propaganda e o lugar-comum, desprovido de projecto e igualmente distante da realidade nacional. Este livro de Maria João Avillez e Vítor Gaspar tem, entre outros, um inegável mérito: confronta-nos com a distância que existe entre o erro da inteligência e o erro da mediocridade. Dir-se-á que o resultado é o mesmo. Infelizmente não é: o erro da mediocridade tem sempre um especial deficit de grandeza.

P.S. – Dizem os analistas que o economista Vítor Gaspar foi derrotado pelo político Paulo Portas. Não tenho a certeza que isso tenha acontecido. A ser assim, isso não constitui nem uma boa nem uma má notícia. Limitar-se-á a reflectir a realidade.

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