O ovni Gaspar

Vítor Gaspar é como a peça de um puzzle que não encaixa – podemos pressioná-lo, virá-lo do avesso, pô-lo de pernas para o ar, que ele recusa enfiar-se no lugar que lhe temos destinado.

O livro Vítor Gaspar por Maria João Avillez, que ao final da tarde de hoje será lançado no CCB, é um glorioso embate de 400 páginas contra um homem que fala, fala, fala mas nunca diz aquilo que dele se espera ouvir, para desespero da própria entrevistadora. A meio da leitura, resolvi enviar um sms a Maria João Avillez: “Vou na página 193 do seu livro. Vítor Gaspar já afirmou conhecer 931 pessoas e ainda não disse mal de nenhuma. É obra.”

É obra, de facto. Qualquer um de nós tem expectativas acerca de um ex-ministro das Finanças que resolve falar meio ano após sair do governo. Esperamos ajustes de contas, alfinetadas ou pelo menos um par de indirectas capazes de serem desmontadas pelos hermeneutas de plantão. Só que o livro não tem nada disso. Há informações novas sobre a forma como a sua demissão e a sua famosa carta foram combinadas com o primeiro-ministro; há dados curiosos sobre a aproximação inicial a Eduardo Catroga (que este entretanto veio desmentir); intuem-se problemas com Paulo Portas; mas há, ao mesmo tempo, uma absoluta falta de acinte, como se Vítor Gaspar receasse que o fait-divers lhe fosse salpicar o fato e a gravata.

Isto é de tal modo assim, e de tal modo desconcertante, que o livro já deu origem àquele género de notícias em que o jornalista destacado para analisar a ocorrência anda obcecado a tentar encontrar provas para uma qualquer polémica e acaba por ter de inventar o que lá não está, ao esbarrar em entrelinhas sem o mais remoto vestígio de um remoque. E não foi por falta de insistência da entrevistadora. Só que tudo o que é embate pessoal é tido como natural e compreensível. Como Vítor Gaspar afirma a certa altura após uma pergunta mais aguerrida sobre Paulo Portas: “Se eu comentasse as minhas reacções privadas, elas deixariam de o ser.”

Donde, este livro não dá para novela – o que em certo sentido é pena, porque não é por aqui que vamos conseguir aceder aos bastidores dos últimos três anos. Dessa porta, Vítor Gaspar continua a guardar a chave só para si. Não acho, no entanto, que essa atitude se deva a qualquer espécie de alergia à política, ou por Gaspar, o economista, considerar tal actividade indigna ou demasiado mundana. Isso é uma leitura primária, que o livro não suporta. Se há coisa que o ex-ministro não se cansa de repetir são os méritos do “primado da dimensão nacional da política”, aliás em contraponto à sua classificação, que ele ontem considerou “insultuosa” neste mesmo jornal, como “quarto elemento da troika”.

Porque se predispôs Vítor Gaspar a falar com Maria João Avillez, então? Se gostarmos muito de politiquice, podemos sempre dizer que foi para elogiar os dotes de Pedro Passos Coelho (que sai deste livro santo de altar) ou para demonstrar que ele ganhou a guerra via Maria Luís Albuquerque, que assumiu o legado e a receita. Mas, a bem dizer, eu diria que Vítor Gaspar aceitou fazer o livro por uma outra razão, pouco emocionante, mas muito necessária: pensar o país em que vivemos. O que lhe parece faltar em emoção sobra-lhe em cabeça, e aí, tanto no diagnóstico como nas soluções, é difícil não concordar com Gaspar. O tecnocrata insensível, o capataz de Schäuble, é, na verdade, um moderado culto e patriota, com o azar de ter bom senso e saber fazer contas – dois terríveis defeitos em Portugal.

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