Encontramo-nos todos em Al Mutamid, o rei poeta

Músicos portugueses, espanhóis e marroquinos mostram uma cultura comum, a do al-Andalus. Concerto sábado em Lisboa e domingo em Beja.

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Durante os ensaios
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O grupo de músicos a ensaiar
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Janita Salomé

Lemos a história. Al-Mutamid nasceu em Beja em 1040 e foi governador de Silves antes de, em 1069, suceder ao pai, Al-Mutadid, como rei da taifa de Sevilha, território que se estendia do sul de Portugal até Gibraltar. Deposto pelos Almorávidas do norte de África, acabaria os seus dias em cativeiro em Aghmat, nos arredores de Marraquexe, chorando em poesia, essa com que exaltara a luxúria da juventude e o poder do seu reinado, o seu trágico destino.

Seguimos as imagens: o discreto mausoléu em Aghmat, erguido pelo reino marroquino àquele que é considerado um dos grandes poetas da língua árabe; o mar de Tânger, que Al-Mutamid atravessara despojado do seu reino; uma sala num edifício daquela cidade, onde músicos portugueses, espanhóis e marroquinos, guiados pela vida e obra do rei poeta, se encontram numa linguagem comum, a do al-Andalus, a cultura miscigenada criada durante os sete séculos de presença árabe na Península Ibérica, esbatida na consciência colectiva por séculos de costas voltadas.

Ouvimos a música: é quinta-feira e estamos no Largo Café, no Largo do Intendente, em Lisboa. El Arabi Serghini, cantor marroquino, ergue-se e ergue o seu canto sufi, lamento poderoso, tão tocante quanto empolgante, incrivelmente expressivo nas gradações dos melismas. A percussão de Quinté vai aumentando de intensidade, acompanhando o bailado sincopado dos braços e tronco de El Arabi Serghini. Filipe Raposo colora a música com um piano que é melodia magrebina trazida para clube de jazz pouco convencional. Jamal Ben Allal, violino na vertical, apoiado na perna, acentua o rodopio frenético a que a música se entrega, enquanto os andaluzes Eduardo Paniagua, ele do som cintilante do saltério, e Cesar Carazo, ele que, pouco antes na mesma música, cantara com gravidade a glória sangrenta da guerra (Al-Mutamid conhecia-a bem), ele que acompanha Ben Allal com a fídula medieval, contribuem para esta música tão prenhe de mistério e ascensão espiritual quando de celebração inebriante de algo primevo, indefinível.

No fim, o público na pequena sala aplaude. Aplaude um ensaio – incompleto, já que Janita Salomé, o vocalista português do grupo, não pode estar presente. Isto, porém, é apenas o início – nasceu música, será editado um CD, um filme chegará em 2015.

O arranque a sério acontecerá este fim-de-semana. O concerto “Al Mutamid, Rei Poeta do al-Andalus” será estreado esta noite no Teatro São Luiz, em Lisboa (21h). Domingo, passará por Beja, a cidade onde nasceu o homem que se celebra (21h30). Aí ouviremos mais que na noite de quinta-feira. Lá estará Janita, ele que cantou Al Mutamid em álbuns como Lavrar o Teu Peito (1985), sequência do enamoramento com a cultura marroquina iniciada em A Cantar ao Sol (1983), a juntar a sua voz extraordinária à extraordinária voz de El Arabi Serghini. Vozes irmãs, de certa forma. Janita conta-nos que, em ensaios em Tânger, reconheceu numa canção cantada por Serghini a melodia de uma moda alentejana: cantou-a, deixou Serghini “estupefacto e satisfeitíssimo” com as semelhanças, e a música que nasceu depois tornou-se união, sem fissuras à vista, entre tradição marroquina e alentejana.

No dia dos concertos, não iremos limitar-nos a ouvir mais. Veremos mais. “Os vídeos no concerto farão, por um lado, uma relação cronológica com a vida de Al Mutamid em Beja, Silves, Sevilha, Múrcia, Tânger e Aghmat”. Por outro, através dos músicos e das pessoas as filmagens captaram, o público “partirá à procura do mito”. Quem o explica é Carlos Gomes, arquitecto, realizador e responsável pelo projecto. Foi através dele que os músicos se juntaram e será ele o realizador do “road movie musical” que seguirá os passos de Al Mutamid, conduzindo-nos “por este território em continuidade, com trocas de conhecimento e traços culturais comuns que fizeram com que fosse moldado da mesma maneira”. A separá-lo, um estreito. E séculos de clivagem religiosa e uma lógica de “vencedores e vencidos” – sete séculos depois da chegada dos árabes à península, a reconquista cristã concretizou-se com a conquista de Granada pelos Reis Católicos de Castela em 1492.


Tudo o que nos liga

“Em Espanha há gente culta que sabe da história, que sabe da literatura, que ama o al-Andalus e a sua cultura", diz Eduardo Paniagua, músico com discografia extensa dedicada à música medieval espanhola. "Mas, em geral", aponta, "Espanha vive de costas para o mundo árabe. Esqueceu o seu passado e o árabe passou a significar ‘invasão’, ‘exclusão’, o que é um erro dramático". E no entanto…

Janita Salomé estava em Paris, acompanhando José Afonso no início da década de 1980. Ali viu e tocou com músicos norte-africanos. A reacção àquela música e àquelas vozes foi imediata: “Senti um apelo ancestral, senti que muito nos ligava. Relacionei logo aquele canto com o fado e com o cante alentejano”. Encontrou algo que não sabia que lhe faltava e, a partir daí, aprofundou. Descobriu a riqueza a que devemos cerca de 18 mil palavras da nossa língua, a contribuição para a gastronomia, para a música, para a poesia. Tal tomada de consciência, em momentos diferentes, parece comum aos integrantes do projecto – El Arabi Serghini é sucinto: “tudo isso está em nós, no sul da Europa e em Marrocos”.

 

A arte como reflexo da vida

Vejamos Carlos Gomes. O clique deu-se com a leitura de O Meu Coração é Árabe [Assírio & Alvim; 1998], colectânea de poesia árabe criada no sul do que é hoje o território português, compilada pelo poeta e ensaísta Adalberto Alves, também colaborador neste projecto. Carlos começou pela poesia e estreitou depois laços com a cultura do norte de África, deparando-se com um temperamento (“um espaço maior na relação com o outro, uma certa incerteza na ligação com a realidade”) que vê como tendo “moldado a nossa maneira de ser”: “acho que é isso que faz com que nos sintamos em casa naquele território”. Agora, deu um passo em frente. Quer levar a outros, a todos aos que lhe for possível, “essa memória cheia de indefinições, o que é a sua grande força, transmitida oralmente ao longo dos tempos”. Neste contexto, quem melhor para servir de elo transmissor que Al Mutamid, cujo percurso de vida parece espelhar o do próprio Al Andalus?

“A sua arte não está nada distante da sua vida”, considera Janita Salomé. “Foi um homem com uma vida extremamente rica e isso está presente na sua poesia, desde a adolescência em Silves até à morte no exílio: “É um fim trágico, mas de um estoicismo impressionante”. Agrilhoado, ele antigo rei respeitado pelos súbditos e adorado pelos poetas que, mesmo à chegada a Tânger, prisioneiro, lhe pediam protecção e apoio (deu-lhes, diz a lenda, as suas últimas moedas, manchadas com o seu próprio sangue). Despojado de tudo e vendo as filhas e a mulher Itimad, a sua musa, trabalhando como tecelãs para sobreviver, Al Mutamid interpelava o seu destino: “Grilheta, não sabes que já sou teu? / Porque és dura e sem piedade? / Se esse ferro deste sangue já bebeu / E a minha própria carne já mordeu / Não me roas os ossos por maldade”. Preso em Aghmat, recordava “os queridos lugares de Silves”: o Palácios das Varandas, “morada de leões e gazelas”, o rio onde tantas vezes ficara “preso nos jogos do amor / com a da pulseira curva, / Igual aos meandros da água / enquanto o tempo passava…” (de “Evocação a Silves”)

El Arabi Serghini aponta que, em Al Mutamid, a poesia daquela fase final tem o mesmo poder que nele tem a música Sufi [a vertente mística, espiritual, do Islão]. “Sublima a tristeza, permite-nos ganhar ânimo perante ela”. Paniagua, que o vê como um poeta moderno (“é muito pessoal e não necessita de adulterar a forma ou de adornar para o mecenas”), resume-o de forma eloquente e objectiva: “Uma juventude, sobretudo a fase portuguesa, com uma poesia hedonista, de amizade, amor e loucura. Depois a poesia áurea de rei, de poder, de guerra e de conquistas. E depois a poesia de sentimento humano, de lamento, de recordações”. Nele, diz, “vemos como que a queda de um império, e também a natureza humana”. Exclama: “É magnífico poder fazer música para estes sentimentos”.

A música, novamente. Aquela que ouviremos no Lisboa e em Beja, fiel à intenção original. Séculos de história, agora. Filipe Raposo, o director musical, contextualiza. “O interessante foi juntar três territórios no mesmo território. E o grande desafio é fazer deste o território do al Andalus no século XXI”.

Começaremos a viajar por ele este fim-de-semana. Preparemo-nos para nos descobrir nele.

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