Pecixe e a resiliência dos Manjacos

A Ilha de Pecixe tem atraído a atenção de várias ONG ou estruturas internacionais e, os projectos para reverter o quadro de isolamento e pobreza da ilha, começam a ser uma realidade que salta dos processos de intenções

Foto
Afectos Letras

Há países improváveis com histórias de vida duras enfrentadas com a resiliência e o sorriso que só alguns se podem gabar de ter.

A Ilha de Pecixe, na Guiné-Bissau, tem 6500 testemunhos desta bravura. Dista do Continente uns 20 minutos de piroga, o que nem é muito, se comparado com a maioria das ilhas do paradisíaco Arquipélago dos Bijagós. Mas para alcançar o ponto de passagem, atravessa-se uma picada só transitável na época seca e que se encontra a uma hora do último centímetro de alcatrão que se avista. A alternativa é uma viagem de barco que traz a má memória de um naufrágio que ceifou a vida em 2009 a mais de 80 pessoas.

Em tempos um celeiro da Guiné, com abundância de arroz, hoje as suas bolanhas definham perante a salga das águas e a produção é meramente de subsistência.

Aqui, vive-se ao sabor do sol que leva a população desde cedo a serpentear entre o pilão, as brasas para o mata-bicho, o campo em tempo de colheitas ou a ida das crianças para a escola. À noite, aparecem as fumarolas das fogueiras cercadas pelo círculo familiar que aqui e ali conversa antes de recolher a casa.

A população é essencialmente jovem, como de resto, em toda a Guiné. A frequentar o ensino básico, em escolas esburacadas e escuras, trespassadas por anos de humidade, 1436 crianças saem todos os dias de casa com o pouco que têm e entram numa sala onde o professor também pouco ou nada tem para lhes dar, a não ser um pouco do seu saber, muitas vezes em troca de um saco de arroz que colmata a falta de salário. Os Manjacos, etnia predominante na Ilha, são uma importante componente da elite do Pais, o que talvez explique o apreço pela educação, neste paraíso remoto, paredes meias com o Rio Mansoa e o Atlântico.

O poder tradicional do Régulo assume especial relevância, seja para aconselhar, regular ou mesmo interpretar manifestações dos Irãs. É o garante da manutenção da paz social. Cabe-lhe determinar a época da semeia e da colheita do arroz, período durante o qual não corta a barba nem o cabelo e, para se ausentar da Ilha, deve proceder a uma série de ritos para obter a devida autorização do “Irã”, um espírito dinâmico que funciona como intermediário entre os homens e Deus.

Foi este mesmo Régulo, com quem estive já por duas vezes, que me falou da importância da literacia para as crianças da ilha. Um homem sem estudos e de idade indecifrável que se preocupa com os mais jovens e a necessidade de lhes proporcionar um amanhã com bases sólidas numa educação de qualidade.

A Ilha de Pecixe tem atraído a atenção de várias ONG ou estruturas internacionais e, os projectos para reverter o quadro de isolamento e pobreza da ilha, começam a ser uma realidade que salta dos processos de intenções.

Preparam-se agora os meios para equipar a ilha com uma rampa que permitirá a atracagem de barcos até 25 toneladas, a recuperação das bolanhas para a retoma do cultivo do arroz, e investe-se agora no apoio directo aos jovens, através da criação de uma biblioteca infantil pela ONGD portuguesa Afectos com Letras em parceria com as Associações Pilil Alil e Building for Humanity.

Reverter a situação actual da ilha de Pecixe, tornando-a auto-suficiente e dotando-a de instrumentos para externalizar as suas potencialidades é um projecto a várias mãos que conduzirá seguramente a uma melhoria da qualidade de vida dos seus habitantes e evitará migrações forçadas em busca de melhor futuro. E, estou certa, os Manjacos lá continuarão a receber-nos com um sorriso do tamanho da sua alma.

Sugerir correcção
Comentar