Pedido da China à UNESCO volta a azedar relações com o Japão

Shinzo Abe: “Inadvertidamente, pode surgir um conflito ou uma disputa... pode surgir assim do nada.”

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Cerimónias oficiais em Nanquim em memória dos mortos durante a ocupação japonesa AFP

O conflito que se trava entre a China e o Japão é feito de batalhas que nem sempre são óbvias, mas que existem. As autoridades chinesas pediram à UNESCO que junte o massacre de Nanquim ao Registo da Memória do Mundo, provocando a crispação do Governo de Tóquio.

Segundo o jornal de língua inglesa de Xangai Oriental Morning Post, é a terceira vez que é feito o pedido para a inclusão de documentos do massacre neste registo da agência das Nações Unidas para a ciência, a cultura e a educação. Ali estão os documentos considerados os mais marcantes da História da humanidade, por exemplo a Magna Carta e o diário de Anne Frank.

O massacre foi um crime de guerra cometido pelo exército imperial japonês em Nanquim em 1936, no final da campanha da ocupação da China. Nanquim era então a capital chinesa e a vaga de violência durou semanas.

China e Japão não têm a mesma versão sobre o que aconteceu. Houve violações, incêndios, execuções de militares e de civis e nos Julgamentos de Pequim — o nome por que ficou conhecida a sessão do Tribunal Militar Internacional para o Extremo Oriente onde foram julgados os crimes de guerra do Japão —, que decorreram entre 1946 e 1948, foi fixado o número de vítimas em 200 mil. 

No Japão, a denominação de massacre não é reconhecida, como não é aceite a dimensão dos crimes ou até das provas sobre eles — o Estado japonês pôs sempre em causa as provas, considerando que muitas foram falsificadas. 

Se a UNESCO incluir os documentos do massacre no Registo, isso significa a oficalização de que ele existiu. A agência da ONU tem evitado imiscuir-se na grande ferida das duas nações asiáticas. Pelo que esta insistência da parte de Pequim foi entendida como uma resposta à iniciativa do Museu da Paz Chiran, que fica na cidade japonesa de Minami-Kyushu, que na semana passada pediu à UNESCO para incluir no Registo cartas de  kamikaze — os pilotos que, durante a II Guerra Mundial, realizaram missões suícidas atirando os seus aviões em voo picado contra navios aliados. Em perto de quatro mil ataques, os pilotos kamikaze afundaram 47 navios e danificaram 300.

Foi de Chiran, no Sul do Japão, que saíram centenas de kamikazes, e o museu defendeu o seu caso explicando que as cartas são um testemunho imprescindível sobre o valor da vida humana e da paz mundial.

“Este pedido vai contra o objectivo da UNESCO de salvaguardar a paz no mundo e deve ser firmemente condenado pela comunidade internacional”, disse a porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros chinês, Hua Chunying. “O pedido é ridículo”, disse ao China Daily Su Zhiliang, do departamento de História da Universidade Normal de Xangai. Hua e outros 40 historiadores que participaram recentemente num congresso de História que juntou académicos da China, Japão e Coreia do Sul concordaram em pedir à UNESCO, em breve, a inclusão da documentação sobre as “mulheres de conforto” no Registo da Memória Mundial. 

As “mulheres de conforto” são outro ponto de conflito entre a China e o Japão — nos anos em que tentou construir um império e ocupou territórios de países vizinhos, o Japão forçou milhares de mulheres chinesas, coreanas, japonesas e de outros países asiáticos a prostituirem-se em bordéis de campanha. O Japão não aceita que as “mulheres de conforto” sejam consideradas vítimas de guerra e não reconhece ter cometido um crime de guerra. Argumenta que a prática era comum nos exércitos na época e que não pode ser o bode expiatório deste problema.

Todas estas batalhas entre a China e o Japão alimentam um conflito latente que tem aspectos mais visíveis porque mais mediáticos. No ano passado, a retórica belicista apoderou-se dos discursos oficiais devido à disputa de um pequeno grupo de ilhas no mar da China, as Senkaku ou Diaoyo, segundo a capital que as nomeia. Desabitadas, são ricas em recursos naturais e ambos os países consideram que fazem parte do seu território — a China alargou a sua área de vigilância aérea de forma a incluí-las, o Japão, que recentemente comprou as ilhas a um privado, fez o mesmo.

Não se espera que o conflito se materialize numa guerra em que todos perderiam — militarmente (a China é uma potência nuclear e o Japão tem todos os meios para o ser) e economicamente (trata-se da segunda e da terceira potências mundiais). Mas a retórica vai subindo de tom. No Fórum Económico Mundial, que se realizou em Janeiro em Davos (Suíça), delegados chineses comentaram em privado (disse Henry Blodget no Business Insider) a visita que o primeiro-ministro japonês, o nacionalista Shinzo Abe, fez ao memorial de Yasukuni, onde estão sepultados chefes militares que a China considera criminosos de guerra. 

Alguns analistas disseram que Abe poderia ter evitado a polémica internacional. Outros explicaram que a visita foi uma declaração de intenções — não provoquem o Japão. 

Questionado sobre as ilhas, a visita e tudo o que opõe a China e o Japão, o primeiro-ministro Shinzo Abe, no mesmo Fórum de Davos, fez questão de não travar escalada, ao dizer: “Inadvertidamente, pode surgir um conflito ou uma disputa... pode surgir assim do nada.”

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