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Cinema latino com quatro filmes na Berlinale: o argentino Historia del Miedo é uma das melhores surpresas de uma competição onde o Brasil também marcou pontos com Praia do Futuro.

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o argentino Historia del Miedo é uma das melhores surpresas de uma competição
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Praia do Futuro : com cores de uma sensualidade garrida e sedutora,

É costume estarem temperaturas muito frias e neve ou chuva em Fevereiro em Berlim – 2012, o ano em que Tabu de Miguel Gomes esteve na competição, ficou recordado pelos nevões. Em 2014, contudo, para ver neve e temperaturas árcticas só mesmo no filme da peruana Claudia Llosa, Aloft , rodado no Canadá subantárctico e um de quatro títulos de cineastas latino-americanos no concurso oficial.

No papel uma presença particularmente forte, sobretudo se levarmos em conta a habitual pontaria da selecção de Berlim para o cinema latino: Gloria de Sebastián Lelio o ano passado, Tropa de Elite de José Padilha ou Gigante de Adrián Biniez em anos anteriores.

Na prática, é o estreante argentino Benjamín Naishtat que parte à cabeça com a primeira longa-metragem, Historia del Miedo. Vindo das curtas e do cinema experimental, Naishtat invoca, por exemplo, Bruce Nauman na construção provocadoramente não narrativa do seu filme, sucessão de episódios desconexos que criam um ambiente claustrofóbico de angústia surda.

É da luta de classes amplificada por um Verão abafado e sufocante que aqui se fala, contrapondo os habitantes de um condomínio fechado de luxo de Buenos Aires e os seus empregados, como se o mundo estivesse lentamente a deslizar para o caos e toda a gente fechasse os olhos às consequências. Lucrecia Martel é uma referência evidente, talvez excessiva, mas Historia del Miedo demonstra uma segurança e um controlo formal invejáveis para uma primeira obra.

Ao mesmo nível formal, o brasileiro expatriado Karim Ainouz sabe muito bem como quer filmar a distância entre imagem e realidade em Praia do Futuro: com cores de uma sensualidade garrida e sedutora, ao som de uma notável banda sonora de Hauschka e dos Heroes de David Bowie. Mas esta história de um nadador-salvador brasileiro que decide assumir a sua verdade (Wagner Moura, o capitão Nascimento de Tropa de Elite), partindo para Berlim e para uma relação com o veterano alemão do Afeganistão cujo amigo não foi capaz de salvar, filma mais o fétiche do que a essência, questiona o estereótipo masculino ao mesmo tempo que o reforça. É um filme optimista, plasticamente belíssimo, de que é difícil não gostar, mas que apenas se enterra mais no gueto do cinema queer de que se quer distanciar.

Distância é, na verdade, o que mais há em La Tercera Orilla, terceiro filme da argentina Celina Murga, "afilhada" de Martin Scorsese. Distância porque este é um filme sobre um adolescente que se sente "distante" de tudo à sua volta, encerrado num colete de forças pelas expectativas da sociedade –  Nicolás, que todos esperam que siga nas pegadas do pai (um daqueles machos provincianos que se compraz na sua normalidade). E distância porque Murga filma ao longe, desapaixonadamente e paredes-meias com a frieza, acabando por cair num certo cinema de autor válido mas ensimesmado que parece só ter espaço para respirar dentro da liberdade de um festival.

Sobra a excepção que é Aloft, com o qual a peruana Claudia Llosa regressa ao concurso depois do Urso de Ouro em 2009 pelo belíssimo A Teta Assustada. É a excepção porque é um filme que pode existir fora do circuito de festivais –  co-produção entre o Canadá, a Espanha e a França, falada em inglês, com a americana Jennifer Connelly, a francesa Mélanie Laurent e o irlandês Cillian Murphy. E, ao fazê-lo, corre o risco de tombar na armadilha impessoal do cineasta que se vende para atingir o reconhecimento internacional.

Manda a verdade que se diga: há evidentes pontos de contacto entre A Teta Assustada e Aloft, e Claudia Llosa deu um passo de gigante em termos de segurança e confiança formais. A superstição, a crença na tradição ou na natureza, a busca de uma conexão espiritual com o mundo que nos rodeia, estão bem presentes nesta história admiravelmente controlada e filmada de uma mãe que luta com a doença do seu filho mais novo e de um filho que se procura reconciliar com um passado doloroso.

É injusto culpar Claudia Llosa por não querer ser apenas "a miúda peruana" que fez o filme da batata na vagina, e ainda mais injusto culpá-la por ter dado um passo em frente na sua carreira. Mas também seria injusto dizer que Aloft ainda reflecte o novo cinema da América Latina – e não temos certeza se Llosa ambiciona ser a nova Isabel Coixet. Embora haja coisas piores para se ser. 
 

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