A História com “agá” grande

Santiago não era bonito. Acima do peso, tinha 49 anos. Mulato poderia, dependendo do critério, ser chamado de negro. Pelo que li, era pai de família. Como era empregado da Rede Bandeirantes, deveria ganhar pouco

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André Mourão/Reuters

Era para ser mais um dia normal dentro da onda de protestos que assola o Brasil desde Junho do ano passado. Era para ser mas não foi.

A História com “agá” grande é sempre assim, é feita de um conjunto de normalidades até que algo sai do “script”, um instrumento parte a corda, uma nota desafina, um personagem é desviado do seu caminho.

O repórter de imagem Santiago Andrade fazia o seu trabalho a cobrir uma manifestação contra o aumento do preço das passagens dos transportes públicos cariocas (e, já agora, “contra tudo isso que está aí”). Levou na cabeça um foguete disparado por um manifestante. O seu crânio explodiu, afundou. Espalhou-se na calçada um bocado do seu sangue e da sua massa encefálica.

Em pouco tempo o enredo adensou-se: Santiago entrou em coma, teve a morte cerebral decretada, partiu desta para outra, tornou-se símbolo de algo (embora ainda não se saiba bem do quê).

A História com “agá” grande gosta de símbolos, mártires, heróis, gosta de coisas escritas a “bold”, sublinhadas, a História com “agá” grande não gosta de miudezas.

Santiago não era bonito. Acima do peso, tinha 49 anos. Mulato poderia, dependendo do critério, ser chamado de negro. Pelo que li, era pai de família. Como era empregado da Rede Bandeirantes, deveria ganhar pouco.

Um dos seus algozes é bonito. Sim, é um jovem bonito. Chama-se Raposo (Fox é o seu “nickname”), tem 22 anos, é tatuador. Fox foi filmado a repassar o foguete para outro manifestante atirar na cabeça de Santigo. “Foi sem querer”, alegou. Com a imagem divulgada por todos os media, não teve jeito, teve de se entregar. Não fosse isso, estaria na sua toca a fingir que não era com ele. Fox é um jovem bonito mas é um ser humano feio. Não quero falar mais dele.

A narrativa dos protestos brasileiros já contava com 117 agressões a jornalistas e, oficialmente, sete pessoas mortas. Nenhum desses acontecimentos gerou comoção maior. Danos colaterais bradaram (e bradam) os mais revoltados pelas péssimas condições de vida no Brasil. Trata-se de uma amálgama humana que mistura representantes tanto da extrema esquerda como da extrema direita (além de desalinhados em geral). Eles julgam poder definir o que é certo e o que é errado baseados apenas nos seus próprios (e, nalguns casos, bizarros) conceitos éticos. Eles nem se entendem entre eles, têm em comum apenas a vontade de ver o circo pegar fogo. E o circo começou a arder.

No guião que estava a se escrever a primeira vítima a ser filmada a ter a sua cabeça a explodir deveria ser um jovem bonito como o Fox. Essa fatídica bomba seria atirada por um policial feio como Santiago. Virgens anarquistas iriam chorar essa morte. A inoperante Dilma (sim, ela existe e é Presidente do Brasil, embora seja difícil explicar para vocês, portugueses, porque é que o governo PT tornou-se um dos benificiários dos protestos) escreveria uma nota de imprensa e daria de ombros. A violência nas manifestações se agravaria. Mais gente morreria. “Olho por olho, dente por dente” estaria escrito em algum cartaz.

Em boa verdade, isso poderia ter acontecido. A polícia brasileira tem tido várias atitudes erradas nessa novela. Mas a História decidiu dar uma guinada inesperada, deixando muita gente boa sem discurso, sem ideias, sem moral que se apresente, sem ética que se defenda, sem lógica que se compreenda.

A História com “agá” grande passou a perna em quem estava a tentar a escrever uma historinha com personagens maniqueístas, onde os bons só querem o bem do povo, mesmo que seja destruindo o patrimônio público e matando e mutilando pessoas pelo caminho (ok, admito, morrendo e sendo mutilada também). Esse caos ético se passa no Brasil mas serve de alerta, poderia acontecer em qualquer lugar, até mesmo aqui.

Duvida? Basta olhar a caixa de comentários de qualquer site jornalístico cá do burgo para ver a quantidade virulenta de ódio (justificado ou não) que anda por aí. Como diria o meu Tio Olavo: “Se todos os 'haters' voassem jamais veríamos o sol”.

Resta saber o fim dessa História ou, ao menos, desse capítulo. Mas não me parece que teremos um “happy end”. Finais felizes costumam combinar com Hollywood. O Brasil está mais para “Tropa de Elite”, com repórteres de imagem tendo a cabeça estoiradas enquanto jovens burgueses destilam o seu cinismo imaginando ser o Che Guevara.

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