Autarquias e sindicatos reclamam autonomia e insistem nas 35 horas

O Governo pediu um parecer à PGR e quer ter uma palavra a dizer na negociação dos acordos que reduzem o horário de trabalho. A ANMP considera que a intervenção das Finanças "viola claramente o princípio da autonomia" do poder local.

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Centenas de autarquias assinaram já acordos para manter o horário de trabalho nas 35 horas Daniel Rocha

A confusão está instalada nas duas centenas de câmaras, juntas de freguesia e serviços municipalizados – do PS, CDU, independentes e até do PSD - que já assinaram ou estão a negociar acordos colectivos de entidade empregadora pública (ACEEP). Grande parte das autarquias já está a aplicar as 35 horas semanais, outras adoptaram as 40, noutras ainda, como é o caso do Porto, aplica-se um regime misto: os trabalhadores abrangidos por providências cautelares mantêm o horário antigo, enquanto os restantes têm de trabalhar mais cinco horas por semana. Apesar do impasse, as autarquias e os sindicatos não desistem das 35 horas.

E se o problema parecia à beira de uma solução com os mais de 150 acordos já celebrados entre as autarquias e os sindicatos, a recusa de publicação dos primeiros ACEEP, por não terem a assinatura do Governo, veio reacender o debate. Inundado de pedidos, o Ministério das Finanças pediu, na segunda-feira, um esclarecimento à Procuradoria-Geral da República (PGR) sobre a “aplicação do princípio da autonomia local em matéria de recursos humanos”. Até lá, nenhum acordo será visado ou publicado.

O problema está na interpretação do regime de contrato de trabalho em funções públicas, em vigor desde 2009. A dúvida é saber se as câmaras podem celebrar acordos colectivos com os sindicatos, sem a intervenção do Governo, ou se o executivo deve participar na negociação e viabilizar esses acordos. Os autarcas entendem que têm autonomia para negociar. A Direcção-Geral da Administração e do Emprego Público (DGAEP), por seu turno, começou a recusar publicar os ACEEP, por entender que o processo deve ser conduzido pelas autarquias e por representantes do secretário de Estado da Administração Pública (SEAP), José Leite Martins.

“É incompreensível que surja uma lei que em vez de resolver um problema vem criar várias frentes de novos problemas”, lamentou esta terça-feira o presidente da Associação Nacional de Municípios Portugueses, Manuel Machado, que disse esperar que a questão “se resolva com bom senso, através da clarificação” ou, defende, da recuperação da lei anterior.

Machado, que na qualidade de presidente da Câmara de Coimbra optou por não contestar as providências cautelares apresentadas pelos sindicatos, mantendo as 35 horas semanais, diz mesmo que se abriu “uma caixa de pandora”. “Hoje existem pessoas que exercem as mesmas funções e que, com base na mesma tabela remuneratória, recebem um vencimento diferente por hora de trabalho. Para além de constituir uma injustiça, isto não será um precedente perigosíssimo, no que respeita a direitos consagrados?”, questiona.

Machado também coloca em causa o facto de os acordos, “segundo a lei, só abrangerem os trabalhadores sindicalizados”; e “de a intervenção da tutela violar claramente o princípio da autonomia das autarquias”. Para além disso, considera, a lei “também não permite reduzir a despesa nem aumentar a produtividade” e “é um factor de desmotivação e de conflitualidade”.

Mesmo que a PGR entenda que o Governo tem de participar no processo negocial e validar os acordos, dificilmente o executivo conseguirá travar as 35 horas nas autarquias. Até porque os autarcas poderão recorrer da decisão junto dos tribunais.

As duas principais câmaras do país, Lisboa e Porto, já assinaram acordos para manter as 35 horas, que se somam aos perto de 150 já assinados, segundo os dados do Sindicato dos Trabalhadores da Administração Local (STAL).

António Costa, presidente da Câmara de Lisboa, que aguarda a publicação do ACEEP, considera dispensável o parecer pedido à PGR. “Os municípios, no exercício da sua autonomia constitucional, gerem os seus recursos humanos, e é isso que têm estado a fazer, a maioria praticando as 35 horas, outros não praticando as 35 horas, mas isso faz parte da autonomia do poder local”, afirmou, citado pela Lusa.

O independente Rui Moreira, presidente da Câmara do Porto, que terça-feira assinou um ACEEP com vários sindicatos, evitou a polémica, mas assumiu que não se articulou com o Governo. Além disso, decidiu que as 35 horas só serão alargadas a todos os trabalhadores quando o acordo for publicado. Até lá, continuarão a conviver os dois regimes (ver texto ao lado).

Os sindicatos não estão dispostos a deixar cair as 35 horas e admitem ir até às últimas consequências, contestando as eventuais recusas dos ACEEP em tribunal. Hoje, o Sindicato dos Trabalhadores da Aministração Pública (Sintap) vai confrontar o SEAP com o impasse criado. “O Governo vai ou não subscrever os acordos celebrados? Ou está disposto a alterar a Lei geral do trabalho em função públicas, que está na Assembleia da República?”, questiona o dirigente José Abraão. O STAL que reúne na quinta-feira com Leite Martins também não desarma e acusa o Governo de “atacar” a autonomia do poder local e a liberdade sindical.

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Entre as autarquias do PSD, algumas, como Faro e Cascais, estão a negociar as 35 horas. Mas em Braga e Aveiro, por exemplo, aplicam-se as 40 horas.

Os 16 municípios algarvios delegaram na Comunidade Intermunicipal (Amal) a representação da entidade empregadora e o acordo será formalizado em breve. O presidente da Câmara de Faro, Rogério Bacalhau, do PSD, entende que, ao contrário do que foi sugerido pelo Governo, “ a produtividade não aumentou pelo facto de, neste momento, estarmos a fazer as 40 horas”. Caso o SEAP não aprove a proposta negociada, enfatiza, “terá de explicar toda esta confusão porque o próprio Governo assumiu, em resposta ao Tribunal Constitucional (TC), que isso poderia ser possível”. A expectativa dos autarcas é que a proposta seja aprovada.

Em Cascais, o social-democrata Carlos Carreiras está a negociar com o STAL, Sintap e Sindicatos dos Quadros Técnicos (STE) um acordo para formalizar as 35 horas semanais, que a câmara, de resto, já está a aplicar. Mas como a lei “não explicita quem deve tomar parte nas reuniões”, Carlos Carreiras convidou os ministros Poiares Maduro, com a tutela das autarquias, e Maria Luís Albuquerque, que tutela as Finanças, a participar nas reuniões. Porém, alerta, “nunca deveremos esquecer que o poder autárquico é independente”.

Em Almada, uma das autarquias que viu os seus ACEEP recusados, o presidente Joaquim Judas, da CDU, considera “completamente absurdo que o SEAP esteja presente em todas as negociações”. “Se não querem cumprir o caminho que o TC admite, então que o digam claramente”, desafia e não afasta avançar para tribunal caso o Governo rejeite o ACEEP. Para já, manter-se-ão em vigor as 35 horas.

Muitas autarquias nunca chegaram a aumentar o horário semanal. A manutenção das 35 horas deve-se aos efeitos das providências cautelares interpostas pelos sindicatos para travar a lei ou, em alguns casos, os autarcas entenderam que, como estavam em curso negociações, não faria sentido alterar o horário. Porém, o advogado Paulo Veiga e Moura lembra que “o facto de as autarquias estarem a negociar um acordo não as desobriga de cumprir a lei”.

Veiga e Moura alerta que os problemas relacionados com a autonomia do poder local na celebração de acordos colectivos não são de agora, embora tenham ganho expressão com a avalanche de acordos negociados após a entrada a lei das 40 horas, em vigor desde 28 de Setembro, e depois de o TC ter deixado claro que nada impedia que fossem negociados horários inferiores. 
 
 

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