A agonia do Libération

Chocada com os planos da administração para o futuro do diário Libération, a redacção do jornal francês lançou este fim-de-semana uma edição onde se lia a toda a largura da primeira página: “Nós somos um jornal.” E depois, em pós-título: “Não somos um restaurante, não somos uma rede social, não somos um espaço cultural, não somos um cenário de televisão, não somos um bar, não somos uma incubadora de start-ups.”

Era a resposta dos jornalistas a um plano que havia sido anunciado no dia anterior pelos accionistas, defendendo que o Libération, cujas vendas em 2013 caíram abaixo dos 100 mil exemplares, não deveria ser “apenas um título de imprensa escrita, mas uma rede social, criadora de conteúdos, passível de ser explorada (a palavra em francês é mais forte: monétisable) através de uma vasta paleta de suportes multimédia”. Primeiro passo: mudar a redacção para os banlieue, para permitir, com a ajuda do designer Philippe Starck, a transformação do edifício da Rue Béranger em tudo aquilo que os jornalistas não querem.

Vai daí, e como não há nada como um francês quando se trata de pegar fogo à Bastilha, os trabalhadores do Libé decidiram recuperar em 2014 o seu espírito original de esquerda 1973, para assim munidos de músculo ideológico se atirarem a accionistas, administradores e directores nas páginas do jornal, suspendendo por momentos, e em interesse próprio, a procura da objectividade. Os donos do Libération estão neste momento a pagar pela impressão de um jornal que dedica diariamente páginas da sua edição a dizer mal da estratégia que foi definida para a própria empresa. Por quanto tempo, não sei.

O que sei é que este caso é sintomático não tanto da crise do jornalismo na era digital, que não é nova, mas da frustração crescente da classe jornalística, que continua a deter um imenso poder sobre os outros mas cada vez menos poder sobre si própria. A notícia que pode fazer cair um ministro deixou de ser suficiente para sustentar o jornalista que a faz, e esta disparidade entre o papel social do repórter e a sua fragilidade económica é de tal modo desconcertante que dá origem a reacções abespinhadas e nem sempre muito lógicas, como esta dos trabalhadores do Libération contra o império do monétisable.

O actual tempo do jornalismo não está a ser um tempo de jornalistas – está a ser um tempo para gestores e investidores, pois é em primeiro lugar a eles que lhes compete encontrar um modelo de negócio viável para o jornalismo do século XXI. A dor da redacção do Libé é, pois, compreensível: é a de quem está belissimamente informado sobre as dificuldades do presente mas sem ter à mão qualquer instrumento para lhes fazer face. Só que o caminho não pode passar por um entrincheiramento em posições insustentáveis, nem pela recusa de quaisquer soluções alternativas, como se um jornal não pudesse ser também uma marca.

Os accionistas dizem do actual Libération que “cada euro investido é um euro perdido”, e é fácil dar-lhes razão. Ainda ninguém sabe verdadeiramente o que fazer contra isso, mas ficar parado é morte certa. A capa de sábado do Libé demonstra que os seus jornalistas têm o mais importante de tudo: liberdade para escrever o que entendem. Desde que isso não se perca, procurar o monétisable é não só uma inevitabilidade como um dever. É que a independência financeira é, sempre foi e sempre será a melhor amiga da independência jornalística.

 
 
 

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