Ei-los que partem pelo direito ao último terço da vida

Não são apenas os jovens que estão a emigrar. Muitas pessoas entre os 50 e 60 anos procuram oportunidades noutros países. Aqui nunca mais terão emprego, mas não se conformam com um prematuro final de vida, inútil e inglório.

Foto

É um profissional. Trabalhou em várias empresas, até criar a sua própria. Sempre quis evoluir, ultrapassar-se, angariar respeito, posição social e dinheiro. Sem qualquer pejo, porque começou do nada. O que conseguiu não o deve à sorte nem a ninguém. Custou a ganhar, e ainda mais a perder, porque se o êxito com mérito próprio nos engrandece, é fácil sentirmo-nos diminuídos se lhe sobrevém o fracasso.

Carlos Alberto Gonçalves Martins, 57 anos, coloca sobre a mesa o seu Curriculum Vitae, cuidadosamente composto segundo o modelo europeu, em várias folhas agrafadas. Experiência Profissional: Firma Cimo de Fala, Lda, desde 2000. Electricidade, Canalizações e Infra-Estruturas em telecomunicação. Função ou cargo ocupado: trabalhador e gerente.
“Eu gosto de ganhar dinheiro”, diz Carlos Martins, rodeado pela família, na sala de jantar da sua casa de Cimo de Fala, um bairro da freguesia de São Martinho do Bispo, a poucos quilómetros de Coimbra. Fala como um empresário, como um homem que sonha e realiza. “Na minha vida, sempre tive um plano. Sempre fui independente e determinado. Nunca me conformei com ganhar pouco dinheiro. Tenho um Toyota Avensis, um bom carro. E gosto de comprar roupa de qualidade para mim, na Quebramar e na Massimo Dutti.”

Antes da crise, Carlos, a mulher e os filhos tinham um nível de vida elevado. Férias todos os anos em Montegordo. Um mês e meio no parque de campismo (onde Carlos só ia passar os fins-de-semana com a família), médicos privados, colégio privado para os filhos, o prestigiado Rainha Santa Isabel, a 500 euros por mês por cada filho. Depois o mais velho estudou Economia em Coimbra e Beatriz, de 19 anos, está no 1.º ano de Comunicação Social. “Era impensável eles não estudarem”, diz Carlos. E a mulher, Cristina, acrescenta: “Ele passou dificuldades, quis dar aos filhos o melhor.”

O colégio privado, por exemplo, foi um luxo. “Eu ganhava muito dinheiro, podia”, diz Carlos. Só em explicações para garantir que o filho entrava na faculdade eram 350 euros por mês. Luxos úteis, pela função simbólica. No resto, frugalidade. Não jantavam fora. “Enquanto os meus colegas, que eram uns tesos, almoçavam no restaurante, eu levava a marmita, toda a minha vida. Punha uma tábua em cima de tijolos e comia assim.” Os filhos levavam o lanche para a escola. Todos os gastos tinham um objectivo. Em cursos, workshops, campos de férias para os filhos não se poupava. Beatriz frequentou a Alliance Française, escolas de música.

Foi o que se pode chamar um enriquecimento sustentável. Carlos nunca teve um cartão de crédito. “Nunca vivi acima da realidade. Nunca dei um passo maior do que a perna. Tenho as dívidas totalmente em ordem. Não devo nada às Finanças.”

As roupas de marca são a sua única fraqueza, embora não compre nada para si há mais de dois anos. “Quando era solteiro, era Lacoste e tudo”, observa Cristina.

“Eu devo ter uns 14 ou 15 casacos de cabedal”, confessa Carlos, como se falasse da sua carta de alforria. Quando namorava com Cristina, comprou-lhe um casaco de peles. Secretamente. Ficou guardado numa mala e só foi usado 11 anos mais tarde, quando o namoro deixou de ser clandestino. “Casaco de peles era só para gente muito rica”, diz Carlos, que, por ser pobre, o pai de Cristina não queria para genro.

Foi preciso comprar um terreno e construir uma casa (onde hoje vive) para mostrar que estava à altura. Tudo isto antes de casar, pouco depois de chegar da tropa, que fez em Lisboa…

“Eu estou velho? Eu?"

Os pais de Carlos, ele pedreiro, ela doméstica, separaram-se quando ele tinha três anos, deixando-o a viver com os avós paternos. O avô trabalhava na agricultura e empregou os nove filhos na construção civil. Mas Carlos queria ser mecânico de automóveis.

Procuraram por toda a zona de Coimbra, ele e o avô. Sem êxito. Os lugares de mecânico eram muito cobiçados, devido às regalias conquistadas pelo Sindicato dos Metalúrgicos, por isso só se obtinham com boas cunhas.

Uma empresa do Porto foi fazer a instalação eléctrica na construção da Escola Superior Agrária de Coimbra e colocou um anúncio à entrada da obra: “Precisa-se pessoal para electricidade”. Foi aí que Carlos começou a trabalhar, com 13 anos. Pouco depois, o encarregado da obra chamou os três melhores aprendizes e disse-lhes: “Vocês vão estudar Electricidade para a Escola Avelar Brotero. Enquanto não trouxerem a matrícula, não trabalham mais.” Eles obedeceram, Carlos Martins, Carlos Malhão e outro que, há três anos, por não ter trabalho, se enforcou na garagem, na aldeia da Pedrulha.

Quando regressou da tropa, Carlos prosseguiu a carreira de electricista, numa empresa. Tornou-se técnico certificado de instalações eléctricas e de infra-estruturas de telecomunicações. Mostra uma fotografia dessa altura, 1978, de cabelo comprido e calças à boca-de-sino.

Além do trabalho na empresa, aceitava biscates em part-time, à noite e aos fins-de-semana. Fazia diariamente muitos quilómetros a pé, entre várias obras, juntando dinheiro para comprar um terreno. A seguir, e durante sete anos, com a ajuda de amigos, construiu a casa. Quando ficou pronta, pôde casar.

“Foi uma festa à grande, à antiga portuguesa, em Ribeira de Frades”, lembra Carlos. Despesas pagas por ele. “Empregados de mesa, cozinheira, tudo alugado.” A lua-de-mel foi em Lisboa, na pensão Paris-Lisboa, no Rossio. Para Cristina, era a primeira vez que saía de casa.

Na pensão, vendo o seu ar de jovens da província, atribuíram-lhes um quarto minúsculo sem janelas, no sótão. A cama rangia, os hóspedes dos aposentos vizinhos batiam nas paredes. Saíram a meio da noite. Tinham reserva para cinco dias, só ficaram um. O resto da lua-de-mel foi passado em casa, em São Martinho do Bispo.

Nasceram os filhos, Carlos especializou-se na profissão, angariou clientes, estabeleceu-se por conta própria. Com grande esforço, a empresa cresceu. Durante dez anos, tudo correu bem. Depois chegou a crise.

“A construção civil está estagnada, não tenho clientes. Os que tenho não pagam. A Justiça não funciona.” Tornou-se quase impossível manter os impostos em dia, os pagamentos por conta.

Há dois anos que não vão de férias, compram agora a roupa na feira dos 23, em São Martinho, tudo de marca branca, Beatriz vai aos médicos do serviço público. E a situação tem vindo a piorar. No mês passado, não houve dinheiro para a conta do gás. Depois de a ter pago agora, com atraso, Carlos ficou com 28 cêntimos na conta bancária.
“Isto está a tirar-me anos de vida”, diz ele. “Não durmo. Acordo às 3 da manhã e já não pego no sono.” Tem tempo de mais para pensar, é esse o problema. Gasta horas a cultivar um terreno de que é proprietário, nas traseiras da empresa, mas a angústia não passa.

Sente-se pleno de energia, com a vida pela frente e ao mesmo tempo sem futuro. A actividade económica tão cedo não vai recuperar, nunca mais terá emprego, com a sua idade.

“Eu estou velho? Eu? Eu faço uma obra em três meses, com canalização e tudo.”
A ele, que se ergueu do nada, no meio mais hostil, vão tirar-lhe o tapete aos 57 anos? Ele, que é um vencedor? Que se entrega ao trabalho, à luta, sem compromissos? “Quando andava a fazer uma grande obra, eu até sonhava com a obra.”
Não. “Um homem pode evitar morrer lentamente”, pensou. E decidiu emigrar. Está há um ano a enviar currículos para empresas que operam no estrangeiro. Um amigo foi para Angola e prometeu ajudá-lo a arranjar trabalho. Ainda não surgiu nada, mas é uma questão de tempo.

Escolheu Angola porque não fala línguas estrangeiras e porque sente que na ex-colónia talvez possa um dia montar uma empresa. Mas já enviou currículos para o Brasil, Colômbia e outros países latinos. Para já quer ir sozinho, sem a família, e não tenciona encerrar a empresa. “Não consigo, seria como arrancar um bocado de mim próprio”, explica com lágrimas nos olhos. Vai apenas suspender actividade.

Entretanto, prepara-se. Frequenta cursos, aprende a cozinhar. Reuniu uma colecção de receitas publicadas na revista do LIDL. “Beringelas recheadas”, lê-se na primeira folha. “Se alguma vez imaginei que aos 57 anos tivesse de emigrar!”
Vai para ganhar dinheiro, amealhar, pagar os estudos da filha, e regressar talvez daqui a dez anos, na idade da reforma. O difícil é conseguir uma oportunidade. Depois, estará por sua conta. “O problema é chegar lá. Não tenho recebido respostas. Faltam-me cunhas. E o que me deve prejudicar é a idade. Tenho a impressão de que estou a jogar contra a idade. Mas quando conseguir, como vou ser bom, não haverá problemas.”

Ficar cá não é alternativa porque não consegue conformar-se. “Pensar é o pior.” Pensar na sua situação, mas também noutras ainda mais graves, de outras pessoas. “Eu vivo a minha realidade, mas vivo também os problemas dos outros.” Só partindo poderá deixar de pensar. “Só sei que, se for, terei mais anos de vida.”

Emigrantes tardios

Nos últimos anos, a crise e o aumento do desemprego têm obrigado muitos portugueses a emigrar. Mas não são só os mais jovens que partem. Se é verdade que é entre estes que são mais elevadas as percentagens de desemprego, também é verdade que, no caso dos mais velhos, uma vez afastados do mercado de trabalho, é quase impossível regressar.

Há por isso muitas pessoas com mais de 50 anos dispostas a tentar a sorte noutro país. Os estudos e até os registos do fenómeno migratório têm incidido sobre as faixas etárias mais baixas, ou a mão-de-obra mais qualificada. Quase não existem dados sobre a emigração.

Segundo José Carlos Marques, especialista em questões da emigração, professor do Instituto Politécnico de Leiria e investigador do Centro de Estudos Sociológicos da Universidade Nova de Lisboa (Cesnova), há várias situações que estão a levar os maiores de 50 anos à emigração, embora não existam muitos dados estatísticos sobre o fenómeno. Há o caso das “pessoas com qualificações, que conhecem o mercado de trabalho noutros países e possuem conhecimentos linguísticos que facilitam a integração”. Há ainda aqueles que “atingiram já com uma idade avançada o topo da carreira numa empresa, empresa essa que neste momento se deslocaliza para outro país, e quer colocar lá quadros qualificados”.

Sabe-se também que pessoas que já emigraram no passado, que têm uma rede de conhecimentos ou até família noutro país, regressam agora, face ao insucesso na integração no mercado de trabalho português. Por fim, ainda segundo José Marques, há pessoas que, mesmo sem qualquer rede de apoio, sentem que, apesar de ultrapassados os 50 anos, ainda têm um contributo a dar à sociedade, que aqui não lhes fornece oportunidades.

A estratégia de muitos destes emigrantes tardios é trabalhar fora uns dez anos, até à idade da reforma, para conseguir pagar dívidas ou os estudos dos filhos.

Há entre os investigadores sociais a percepção empírica de que os números deste tipo de emigrantes estão a aumentar, embora seja difícil contabilizá-los. A única forma de o fazer é aceder aos registos das instituições de segurança social dos países de destino, uma vez que não há qualquer inventário das saídas.

Segundo dados, parciais, do Instituto Nacional de Estatística, foram confirmadas desta forma, no ano de 2011, as saídas de 2131 emigrantes com idades entre os 50 e os 59 anos. Em 2012, o número foi de 2569, um crescimento significativo, ainda que inferior ao registado nas idades mais baixas.

Por exemplo, em Inglaterra, caso sobre que têm incidido os estudos de alguns investigadores, houve um aumento, na última década, dos emigrantes portugueses com mais de 55 anos registados na Segurança Social: de 240, em 2002, para 944 em 2013.

Ainda que parcelares, os dados permitem entrever a probabilidade de que a emigração depois dos 50 anos tenda a aumentar.

Se cada vez se vive mais anos e se cada vez há menos empregos, a que os mais velhos têm cada vez menos acesso, este tipo de fluxo migratório é inevitável. É este o paradoxo de uma sociedade com indicadores demográficos do mundo desenvolvido e económicos do subdesenvolvido: cada vez há mais cidadãos de meia-idade a engrossar as fileiras de um exército de vencidos.

 “Não há emprego para mim”

Alexandre Neves, 52 anos, é maquetista, embora há mais de dez anos quase não trabalhe na sua área. Deixou de fazer maquetas de urbanizações no ano 2001, para trabalhar numa empresa de construção, como vendedor de betão. Não fazia o que gostava, a sua especialidade, porque não conseguiu colocação em nenhuma das empresas de maquetas em Portugal. Mas saiu-se bem na área comercial. Entre 2004 e 2007, obtinha rendimentos anuais de cerca de 75 mil euros. Depois, como assistente de produção, passou a ganhar 2400 euros por mês, limpos. Era casado, com dois filhos, vivia numa boa casa em Setúbal, com carro e moto. Com a crise, a empresa fechou.

Recebeu subsídio de desemprego até Agosto do ano passado. Mas toda a sua vida se desmoronou. O casamento desfez-se, vendeu a casa, separou-se dos filhos, uma menina de quatro anos e um menino de um.

Tentou encontrar emprego, mas desistiu. Mesmo que o aceitassem nalguma empresa, o salário não ultrapassaria os 800 euros. Só de pensão para os filhos paga 400. Tentou um negócio de venda de azeite, com um amigo, ponderou outras possibilidades, como gerir um pequeno hotel em Moçambique. Nada resultou. “Não há emprego para mim”, concluiu.

Alexandre considera-se um bom maquetista. É a sua arte e a sua paixão. Não fez nenhum curso, porque eles não existem em Portugal, mas aprendeu com quem sabia. Recentemente, realizou alguns trabalhos para a empresa de um amigo que trabalhou 15 anos no Canadá, nessa área. Foi apenas uma ajuda, aos fins-de-semana, uma vez que a empresa não tem vagas, porque não tem encomendas. Mas o amigo, a quem Alexandre reconhece grandes competência e conhecimento, gostou do seu trabalho. Mostrou a maqueta de Alexandre à mulher e disse-lhe: “Olha, isto é um maquetista!” Talvez não tenha tido consciência de como isto foi importante para o amigo.

Este voltou a ganhar confiança nas suas capacidades, o que se tornou um dos nutrientes do seu plano para uma nova vida. O outro foi Vera. Terem-se conhecido e iniciado uma relação amorosa tornou a existência de ambos mais séria, mais comprometida.

Vera trabalha numa empresa multinacional que vai fechar a delegação portuguesa, propondo aos empregados lugares noutros países. Vera aceitou uma vaga na Irlanda, e Alexandre não teve dúvidas: vai com ela, no início do Verão.
Tem andado a analisar o mercado irlandês de maquetistas. “Há quatro empresas em Dublin. O salário, a julgar pelos anúncios que vi publicados, é de 36 mil euros anuais, para começar. Vai dar para ter uma casa, com a Vera, mandar dinheiro para os meus filhos.”

Vera teme que o namorado esteja a ser muito optimista. “Eu acredito em mim”, diz ele. “Sou um workaholic. E funciono bem em equipa.” Mas a actividade de maquetista tem evoluído muito. Vários processos são agora realizados por computador, há muitas especializações. “Eu sou assembler. Monto as componentes, de terrenos e edifícios como se fosse um Lego”, diz Alexandre. “Isso é o que sei fazer melhor. Não tenho experiência noutras áreas. Pintar não faço muito bem.” Os colegas irlandeses talvez tenham outras aptidões, cursos especializados. Nos anúncios que Alexandre viu, são pedidas competências que ele nem sabe o que são. Mas não teme a concorrência. “Em todos os sítios onde trabalhei as coisas correram bem.”

Alexandre nasceu em Moçambique, onde a família estava há três gerações e de onde veio com sete anos. As ligações a Portugal não são tão fortes que o impeçam de criar raízes noutro lugar. É verdade que a mãe está com 75 anos. “Mas tem os amigos do Lyons Club.” E os filhos podem sempre ir estudar para a Irlanda, se as coisas correrem bem. Vera e Alexandre estão a vender tudo, não tencionam voltar a Portugal.

“Tenho 57 anos, mas 57 mil sonhos para realizar”

Dalila Moura, 57 anos, tem um doutoramento em Ciências da Educação, que terminou no ano passado. Desde o curso do Magistério Primário em Santarém, desde que frequentou aquela disciplina — Espaço, Movimento e Drama — que sabe em que direcção pretende ir. Ela quer usar a arte na Educação. Principalmente o teatro. E todo o seu percurso tem sido feito com esse objectivo.

Foi professora do 1.º ciclo e na Escola Superior de Educação de Setúbal, na formação de professores. Fez o doutoramento na Universidade de Huelva, em Espanha, com uma tese sobre Avaliação das Actividades de Enriquecimento Curricular na Expressão Artística, a partir de um estudo exploratório sobre o tema, que realizou como bolseira. A investigação incidiu sobre o trabalho de Arquimedes da Silva Santos, o pioneiro na Educação pela Arte em Portugal.
Como tinha aprofundado estes conhecimentos específicos, desenvolveu técnicas de formação próprias, que passou a utilizar nas suas aulas. Disfarça-se de palhaço ou de bruxa, ensina através de canções ou dispondo os alunos em círculo, sentados no chão em almofadas.

Em 2006, foi destacada pelo Ministério da Educação para uma IPSS, a Ludoteca Moinho, na zona de Setúbal, com o objectivo de promover o sucesso escolar num bairro pobre, de pescadores. Aí, e como coordenadora da ludoteca, construía histórias interactivas, e encenava-as, com as crianças do bairro.

Mas o financiamento foi cortado e Dalila teve de voltar ao ensino do 1.º ciclo. Só que agora as regras são outras. “A burocracia é enorme, dificulta a criatividade”, diz ela. “Dantes, o professor tinha mais liberdade. Agora, a escola está mais fragmentada, não permite a metodologia transversal de conhecimentos que sempre utilizei. O sistema está montado para a compartimentação de saberes.”

E esta filosofia existe tanto no ensino das crianças, como na própria formação de professores, onde Dalila também gostaria de trabalhar, mas não consegue colocação. “Tive o privilégio de ter formação em Drama e gostaria de experimentar essas capacidades, no âmbito da educação pela arte, na formação de professores. Porque não dá o ministério hipóteses aos professores que têm formação para formar?”

Dalila escreve poesia — tem três livros publicados. “Por vezes, vou a conduzir e tenho de parar de repente, para escrever”, conta. Mas já não consegue editar livros. “Na literatura, funciona tudo por grupos de amigos. Não quero ser obrigada a pagar para publicar os meus livros.”

Gostaria de ter um atelier de movimento e drama, de abrir uma escola de artes num certo palacete abandonado que conhece, onde poderia promover o intercâmbio intergeracional. Mas nada disto é possível. “Tenho 57 anos, mas 57 mil sonhos para realizar”, diz.

Dalila é casada, tem o pai a viver com ela, e dois filhos, um deles desempregado. Mas quer emigrar. Tenciona concorrer para Timor, para fazer formação de professores, ou para Macau. Também já enviou o currículo para Angola e Cabo Verde. Quer ir sozinha, por algum tempo. A família encoraja-a.

Faltam dez anos para a reforma e não está satisfeita. “A vida profissional que tenho não me realiza completamente”, diz, como se os sonhos por consumar lhe sustivessem, intacta, a juventude. “Este país está a ser muito redutor. E eu vivo para o futuro, não para o passado.”

Correr riscos

Mas recomeçar noutro país depois dos 50 pode ser mais difícil do que se imagina. Cláudia Pereira, investigadora no ISCTE e no Observatório da Emigração, encontrou alguns casos de insucesso na sua investigação, no âmbito do pós-doutoramento sobre a emigração portuguesa no Reino Unido.

Lembra-se do caso de um açoriano de 54 anos, que entrevistou recentemente, que não conseguiu adaptar-se e teve de pedir dinheiro emprestado para regressar. Tinha partido com 100 euros no bolso e contava com a ajuda de um amigo, cujo alojamento em Londres poderia partilhar nos primeiros tempos. Mas tratava-se de um quarto exíguo e o senhorio não tardou a expulsá-lo de lá. O emprego, de pedreiro, que conseguiu através da agência de um português, revelou-se muito exigente. Ele não conseguia cumprir, não falava inglês, sentiu-se sozinho, com saudades, quis vir embora. Obteve dinheiro emprestado e trabalhou apenas os dias necessários para ganhar o equivalente ao preço do bilhete de avião.

Cláudia Pereira conheceu outros casos semelhantes. “As pessoas já não estão tão dispostas a correr riscos”, explica, fazendo a comparação com os fluxos migratórios dos anos 1960. “A adaptação é mais difícil.” O trabalho é mais exigente, e, desde o alargamento da União Europeia, há a concorrência de trabalhadores do Leste. No caso britânico, o dos imigrantes polacos, que geralmente falam inglês.

Os trabalhadores portugueses encontram um ambiente mais favorável, em que são mais competitivos, em mercados como o de Angola, onde se fala português e o sector da construção está em crescimento. Na Europa, essa emigração não especializada, como existiu no passado, é hoje uma ilusão.

Adélia Garcia Morais pertence a outro grupo. Ela, 57 anos, arqueóloga, e o marido, 61, médico neurologista, com uma filha de oito anos, vivem em Lincoln, no Reino Unido, desde Agosto do ano passado. Nuno foi oficial e médico da Força Aérea. Depois de 36 anos de serviço e várias missões, uma delas em Timor, passou à reserva territorial e reformou-se. Mas continuou a trabalhar no Serviço Nacional de Saúde, fazendo urgências no Hospital Garcia de Orta, até que foi publicada uma lei segundo a qual os reformados não podiam mais trabalhar na função pública.

Adélia e Nuno tinham sete filhos (dois dela, cinco apenas dele), a filha mais nova a estudar no Colégio Moderno, outro filho a estudar Medicina em Barcelona, muitas despesas, uma enorme energia. “Dissemos um para o outro: o que é que estamos aqui a fazer?”, conta ela, numa entrevista por telefone.

Foi numa viagem à Alemanha, de férias, que decidiram emigrar. Colocaram várias hipóteses. Pensaram regressar a Timor, onde se conheceram. Talvez a Austrália. O Médio Oriente?, lembrou-se Adélia, imaginando paraísos de investigação arqueológica. Até para o Dubai enviaram currículos.

Até que a Global Medical, uma empresa de recrutamento de médicos, encontrou uma vaga no Reino Unido. Nuno inscreveu-se na Ordem dos Médicos inglesa, que lhe reconheceu equivalência ao título de consultant, o topo de carreira do Serviço Nacional de Saúde britânico. Foi-lhe oferecido um lugar na unidade de AVC do Hospital de Lincoln, no condado de Lincolnshire, no East Midlands.

Saudades do Alentejo

“Eu não gosto de estar aqui”, diz Adélia. Lincoln é uma cidade pequena, de 97 mil habitantes, muito conservadora, a três horas de Londres. Os partidos de extrema-direita, anti-imigração, são cada vez mais fortes, organizam manifestações intimidantes. Adélia dificilmente encontrará trabalho na região. Dedica-se à filha, Teresa, matriculada num bom colégio, a Escola da Catedral, que pertence à igreja anglicana, e ao marido, a quem está prestes a ser oferecido um lugar efectivo e definitivo noutro hospital ali perto. Tinham feito dois amigos, um colega italiano de Nuno, que se vai embora, e uma búlgara, que também está de partida.

“Vamo-nos alimentando de livros e fazemos companhia um ao outro”, diz Adélia. Contam o que lêem, ele nos livros de Eça, ela nos de Alexandra Lucas Coelho [cronista do PÚBLICO]. “Vamos construindo assim uma teia entre nós dois.” Para Adélia, os livros de Alexandra são uma espécie de guia das aventuras que imagina para si. “Tiro notas sobre os lugares de que ela fala, os livros, os filmes, Depois vou pesquisar e ler mais sobre eles.”

Em Lincoln, os dias terminam muito cedo. “Tudo fecha na cidade, é estranho. Há muitas crianças, mas não fazem barulho.” Portugal tornou-se insuportável para Adélia, mas agora morre de saudades. Está arrependida de ter ido. Chora ao telefone. “Se fosse hoje, não tomaria a mesma decisão. Enfrentaria a fera.”

Tem saudades de fazer escavações no Alentejo. Do cheiro dos pimentos assados. “Aqui também há pimentos, mas não têm cheiro.” Saudades do barulho da rua que ouvia na sua casa de Lisboa. Do ruído das esplanadas. Do sol a entrar pela janela iluminando a estante. Sabe sobre que livros incidia esse raio de sol a cada hora do dia. E vai recordando isso, a cada hora dos dias cinzentos do Lincolnshire. “Chego a telefonar para o nosso número, só para saber que o telefone toca lá, na casa que deixámos fechada.”

Teresa tem um caderninho onde escreve coisas para mandar à sua professora do Colégio Moderno. Mas adaptou-se bem à escola inglesa. Principalmente no relacionamento humano. Recebeu já o diploma de um prémio especial da Comunidade que diz: “For being consistently kind, helpful and polite to others” (Por ser constantemente atenciosa, prestável e educada).

Na idade dela é fácil. Os pais nunca se adaptarão ao seu novo mundo, embora saibam que também é tarde para regressar. “Nunca pensei que viria a sentir assim a falta de Portugal”, diz Adélia. “Mas não volto. Enquanto puder, não volto. E quando não puder, também não.” Não deixará que o país lhe roube o último terço dos seus anos, esses que devíamos ter reservados para saborear as conquistas de uma vida. Para ela, Portugal é cada vez mais a memória de um mundo que não existe, o som de um telefone a tocar numa casa vazia.

Sugerir correcção
Comentar