Uma dança que não é para perceber, é para sentir

Quinze coreografias e quinze passos para olhar para a dança como território sensível e experimental. O Guidance aposta no fascinante hibridismo da nova criação

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, de Flávio Rodrigues é uma das 15 coreografias que serão apresentadas no Guidance

Os festivais devem ser espaços de risco? Rui Horta, coreógrafo e consultor para as artes performativas do Centro Cultural Vila Flor (CCVF), em Guimarães, acha que sim. E acha mais: “Não é programação, é curadoria” porque está presente uma ética de acompanhamento que cria margem para a tentativa e, sim, o risco, que só a estrutura orgânica de um festival poderá proteger.

A 6ª edição do Festival de Dança Contemporânea de Guimarães que começa hoje e se estende até dia 15 é isso tudo. Mas o desafio agora está no “enfrentar da depressão pós-parto” que existe sempre após uma Capital Europeia da Cultura, que Guimarães foi em 2012. Passou pouco mais de um ano mas ainda é preciso “que alguém limpe o salão de festas no dia seguinte”. As quinze coreografias que chegam à cidade são um dos passos seguintes para o desafio que o CCVF tem pela frente: “Mais do que ir buscar novos públicos, consolidar os que já cá estão”.

O programa abre com Matilda Carlota, de Jonas Lopes (19h30), coreografia-instalação que revela “um mundo de contradições e ambiguidades”. Na liberdade discursiva de Jonas Lopes encontramos uma das principais linhas de afirmação de uma geração tão pós-tudo que habita o hibridismo como se fosse uma pele natural. Rui Horta gosta disso, mesmo que, por vezes, gostasse “de ver mais dança dança”.

Mas dança-se muito, dançar-se-á muito ao longo destas duas semanas. Desde logo porque o modo como a dança é entendida por Jonas Lopes, Flávio Rodrigues, Marco da Silva Ferreira, Mara Andrade, Filipe Pereira, Teresa da Silva, Luís Marrafa, Aleksandra Osowicz, Helena Martos Ramírez e Matthieu Ehrlacher, os nomes que assinam as novas peças que vamos poder ver, é já uma dança “com uma maturidade surpreendente, uma cabeça e um pensamento muito interessantes”, explica Rui Horta. Mesmo que algumas, ainda que frágeis, sejam entusiasmantes. “As peças estão sempre em “work in progress” porque sinto que estão sempre inacabadas”, confessa Luís Marrafa, de Évora, há anos a trabalhar em Bruxelas, que apresenta Abstand (dia 15), coreografia a dois que explora os interstícios de um movimento quase solene e ritualista.

Ao lado de Fica no Singelo, de Clara Andermatt (hoje, 22h), Pele, de Miguel Moreira (amanhã), Hoje, de Tiago Guedes (dia 13), e Paraíso – Colecção Privada, de Marlene Monteiro Freitas (dia 15, sempre no CCVF) “o enorme hibridismo” que se percebe numa geração de criadores é a linha comum que atravessa uma programação que traz ainda o comovente MM, do sueco Ludvig Daae (amanhã), e duas obras pelo Ballet de Lorraine (sábado), assinadas por Emanuel Gat e Mathilde Monnier que mostram como a memória faz parte do ADN da novíssima dança contemporânea (ver PÚBLICO de sexta-feira).

Nil-il é, para Flávio Rodrigues, com o Ballet Contemporâneo do Norte, um modo de reescrever a fronteira do seu próprio corpo. “Eu tendo a projectar nas minhas propostas coreográficas, questões pessoais ou questões que remetem a uma possível autobiografia. É importante para mim, que o que apresento seja um reflexo das experiências que vou tendo. Quase que como um diário, mas abstracto, poético (talvez), diluído… Habituei-me a estar em estúdio sozinho. A usar o meu próprio corpo como veículo.”

A peça vive de uma soturnidade do desafio que é olhar para o outro como um espelho e depois atravessá-lo encontrando aquilo que nem o espelho nem o vídeo, extensões naturais de quem trabalha sozinho, podem dar. “Encontrei a partilha de grupo e o estar de fora (ter o papel de observador, contínuo), foi interessante”, diz, habituado que estava a “criar o [seu] próprio horário e poder ou não respeitá-lo”.

“[Quando estou sozinho, há uma sensação de liberdade brutal  que me agrada bastante, e que tem muito a ver com o tempo: quanto tempo preciso? A que horas acordo? A que horas paro para fumar um cigarro?”. Nil-Il também é isso, coreografia de negociação do tempo e do espaço, tal como O que fica do que passa (dia 14) é, para Filipe Pereira e Teresa da Silva, território de convergência que entende “o espaço teatral como lugar privilegiado para a concretização e amplificação do imaginário, de fantasias e ficções e de deslocar para o dispositivo cénico a acção da dança.

“É uma coreografia com perspectiva e horizonte, que brinca com a intuição do próprio espectador, que o interpela tanto quanto o seduz. Mara Andrade, a solo, Oxitocina, e com Marco da Silva Ferreira, Por minha culpa, minha tão grande culpa (dia 8) fala de um questionamento que quer evitar a reprodução de uma sequência de movimentos. “Por vezes as escolhas são tão intuitivas que nos podem enganar e comprometer o que vem a seguir, mas se se tornam extremamente racionais podem castrar e fazer cessar um material que ainda tinha muito para dizer”, acrescenta Marco.

O risco fica, por isso, do lado do espectador. Perguntado sobre o que diria a alguém que nunca tivesse visto nenhum espectáculo de dança, Flávio Rodrigues “falava-lhe da dança, falava-lhe de amor”. Porque, como diria Luís Marrafa, “Dona Maria, não se preocupe. Não é para perceber é para sentir…”

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