Philip Seymour Hoffman em dez personagens

Uma revisão da carreira cinematográfica do actor de 46 anos. Mesmo em papéis secundários ou filmes menos interessantes, era impossível não reparar nele.

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O actor a 19 de Janeiro deste ano

Scotty J.

Boogie Nights, de Paul Tomas Anderson (1997)

Philip Seymour Hoffman já tinha entrado nalguns filmes – como o primeiro de Paul Thomas Anderson, Hard Eight, ou o óptimo e tão esquecido Nobody’s Fool, de Robert Benton – mas foi aqui, com Boogie Nights, que se tornou mesmo impossível não reparar nele. Ainda que ele fosse apenas um secundário, só mais um dos membros da trupe de pornógrafos que protagoniza o filme de Paul Thomas Anderson. Ou exactamente por isso. A sua presença incerta e desequilibrada, perdida num mar pessoal de angústias e inseguranças, define muito do essencial da persona que desenvolveu em tantas personagens futuras: uma fragilidade psicológica que, aliada à imponência física, se torna imprevisível e, consequentemente, assustadora. Hoffman deu a Boogie Nights pelo menos uma cena memorável: a litania de auto-insultos (“sou um idiota, sou um idiota”), pequeno apogeu da sua capacidade de criar uma “zona de desconforto” entre ele e o espectador.


 
Allen

Happiness / Felicidade, de Todd Solondz (1998)

Ainda secundário em Felicidade, o mais célebre dos corrosivos e desesperados olhares de Todd Solondz sobre as “classes médias” americanas. Hoffman, mais uma vez a jogar no contraste entre a imponência do porte e a timidez sem auto-estima, faz o papel de um homem obcecado por uma mulher que o ignora, e quando quer ser sedutor, consegue apenas ser ordinaríssimo, obsceno. É talvez a primeira personagem de Hoffman que faz da “vulgaridade”, em todos os sentidos, um reflexo dos medos que o espectador projecta neles. O seu monólogo face ao psicoterapeuta (“da próxima vez que a vir vou dizer-lhe que a acho atraente”) é outro momento clássico da “hoffmaniana”.

Joseph Turner White

State and Main, de David Mamet (2000)

Agora nas mãos de David Mamet e num registo diferente, a comédia cerebral e introspectiva típica do realizador. Hoffman é um argumentista que vem em socorro de uma rodagem caótica, com o propósito de reescrever e salvar o argumento de uma rodagem em crise. Mas está ele próprio em crise, crise de vida e crise de inspiração. Com outra elegância nos modos, Hoffman retrabalha o estilo da sua “angústia”, e volta a ser, na profundidade do seu olhar ao mesmo tempo muito perdido e muito concentrado, uma porta aberta para uma alma cheia de “espaços em branco”.

Dean Trumbell

Punch Drunk Love / Embriagado de Amor, de Paul Thomas Anderson (2002)

De novo com Paul Thomas Anderson, num filme onde a estrela é Adam Sandler. E outra vez uma forma de vulgaridade, levada à beira da caricatura (será das mais “oleosas” personagens de Hoffman) mas nem por isso menos inquietante quando enquadrada no registo de comédia slow motion (e slow burn) conduzido por Anderson. A cena do seu confronto com Adam Sandler é um prodígio de humor insólito, ao retardador e em desfasamento.

Jacob Elinsky

25th Hour / A Última Hora, de Spike Lee (2003)

Na ressaca do 11 de Setembro, Spike Lee ofereceu a Hoffman um dos papéis cruciais da sua carreira. Numa Nova Iorque traumatizada, de ferida bem aberta (uma longa cena decorre com a vista nocturna do Ground Zero ao fundo), Hoffman partilha com um grupo de amigos uma última noite na cidade antes de, pela manhã, um deles recolher à prisão para cumprir pena por tráfico de droga. Contracenando com outro dos grandes actores americanos da sua geração (Edward Norton), Hoffman excede-se em angústia, hesitante, tolhida, um medo difuso que manieta e bloqueia. Medo que tem expressão na atracção culpada da sua personagem, um professor, por uma aluna (Anna Paquin), bem desenvolta na arte da provocação. Nunca, mas nunca, Hoffman pareceu tão desamparado como na cena da discoteca, onde Spike Lee acabou a filmá-lo perdido e sozinho como, por exemplo, um astronauta do 2001 perdido e sozinho na imensidão espacial.

Truman Capote

Capote, de Bennett Miller (2005)

Um dos filmes e um dos papéis mais conhecidos do actor, fruto do Oscar que com ele conquistou. Está longe de ser dos melhores ou mais interessantes filmes em que entrou, mas demonstra exemplarmente uma qualidade de Hoffman de que não ficaram muitos registos: o papel de composição a tender para o mimetismo, para a “transfiguração”. Interpretando Capote durante a preparação de A Sangue Frio, Hoffman apropria-se dos seus maneirismos, faz-se pequenino e franzino como o escritor (ou faz esquecer que Capote era pequenino e franzino), e a ilusão funciona às mil maravilhas.

Andy Hanson

Before the Devil Knows You’re Dead / Antes Que o Diabo Saiba que Morreste, de Sidney Lumet (2007)

Foi o derradeiro filme de Sidney Lumet, que aos 83 anos assinou um dos mais vigorosos e ferozes filmes americanos de toda a década de 2000. Espécie de filme-catástrofe em pequena escala (dois irmãos planeiam um golpe, quase “inocente”, contra a ourivesaria da família, e depois dá tudo para o torto), tem Philip Seymour Hoffman no papel do desastrado meneur de jeu, constantemente contrariado pela reacção da “realidade” aos seus próprios planos. Ver a progressiva desolação da personagem, por exemplo na cena em que, sozinho, arruma (ou desarruma) a casa vazia depois de a mulher se ter ido definitivamente embora, impressiona e fere qualquer um. Como impressionam algumas das mais francas cenas eróticas do mainstream americano de tempos recentes, desenhadas por Lumet, Hoffman e Marisa Tomei numa mistura de naturalidade conjugal e frieza à beira do desconforto. Coincidência trágica, se for coincidência: a personagem de Hoffman é heroinómana, e há uma longa cena em que se assiste ao cerimonial que prepara o “chuto”.

 

Caden Cotard

Sinédoque, Nova Iorque, de Charlie Kaufman (2008)

Na estreia de Charlie Kaufman na realização Philip Seymour Hoffman assumiu o seu alter-ego, levando às costas um filme labiríntico onde os caminhos se fazem numa mescla entre “realidade”, mundos mentais, e mundos ficcionais dentro da ficção do próprio filme. É porventura o mais paranóico (e certamente o mais hipocondríaco) dos papéis de Hoffman, e vê-lo a dar corpo a esta personagem perdida dentro de si mesma, mas apostada em projectar criativamente (trata-se de um “visionário” encenador de teatro) o seu caos interior, num território onde já não é segura a fronteira entre o que é real e o que é da ordem do delírio, é outra medida cristalina do seu talento. Poucos actores conseguiriam pôr uma personagem a discorrer sobre as próprias fezes sem que isso parecesse ridículo. Pelo contrário, é aflitivo, deprimido, sinal de uma loucura “mansa” que Hoffman interpreta no tom justo.

Padre Brendan Flynn

Dúvida, de John Patrick Shanley (2008)

Hoffman no seu mais baço e sombrio. Um padre católico, nos anos 1960, sobre quem recaem suspeitas de conduta “imprópria” com menores. Todo o filme se constrói como um jogo do gato e do rato entre o espectador e a culpabilidade, real ou pressuposta, da personagem. E se John Patrick Shanley dirige o filme com um rigor que é mais mortis (e académico) do que a frieza austera que aparentemente pretendia, este é um dos casos em que a presença de Philip Seymour Hoffman, a criar uma aura obscena feita por omissão, faz o filme parecer melhor do que o que realmente é. Fazer-se repugnante sem se fazer grotesco: imaginam-se poucos outros actores a consegui-lo.

Lancaster Dodd

The Master / O Mentor, de Paul Thomas Anderson (2012)

O último grande papel de Philip Seymour Hoffman, numa personagem decalcada do “mítico” L. Ron Hubbard, fundador da famigerada Cientologia. Paul Thomas Anderson (que só se “esqueceu” do actor num filme, Haverá Sangue) filma a personagem como se ela fosse o paradigma do great American male, do “grande macho americano”, poderoso e quase omnisciente, pater familias e poligâmico – uma força da natureza, com uma autoconfiança quase inabalável, construída com uma porção de sinceridade e várias de bazófia. O vendedor supremo, portanto. E por tudo isto, uma espécie de reverso da persona característica de Hoffman, numa das raras vezes em que coube à sua personagem a função de dominar, tudo e todos.

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