Leiloeira cancela venda por falta de segurança mas Estado ainda quer vender os Mirós

Christie's cancelou a venda da colecção Miró, depois de o tribunal ter detectado ilegalidades no processo. Alienação das obras é prioridade para o Estado e, por isso, o leilão pode voltar a ser marcado.

A existência de ilegalidades, apesar da luz verde do tribunal, no processo de expedição para Londres das 85 obras do catalão Joan Miró (1893-1983), que estão nas mãos do Estado desde a nacionalização do Banco Português de Negócios (BPN), bastaram para que a Christie’s cancelasse o leilão, que devia ter acontecido nesta terça e quarta-feira. O Governo, no entanto, mantém a vontade de alienar a colecção, reiterando o secretário de Estado da Cultura que a manutenção desta não é uma prioridade. Já Francisco Nogueira Leite, presidente do conselho de administração da Parvalorem e Parups (sociedades criadas no âmbito do Ministério das Finanças para recuperar créditos do BPN e assim proprietárias das obras), fala apenas em “adiamento do leilão”, responsabilizando a leiloeira “por todas as operações”.

A atribulada história desta colecção continua. Depois de o Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa ter rejeitado nesta terça-feira a providência cautelar, autorizando o leilão, foi a Christie’s que decidiu retirar as obras para venda por não estarem reunidas as condições de segurança necessárias. Para a leiloeira, as “incertezas legais” criadas pelo processo, levantado pelo Ministério Público, “do qual a Christie’s não é parte interessada”, são um impedimento, anunciou o seu director de comunicação, Matthew Paton, explicando que apesar de o tribunal ter aceite a venda, esta disputa significa que não são “capazes de oferecer com segurança estes trabalhos para venda”. Matthew Paton explica que a Christie’s “tem a responsabilidade” de oferecer aos seus clientes as condições máximas de segurança nas transacções, o que significa que tanto a leiloeira como os interessados em comprar as obras “têm de ter a certeza legal de que as podem transferir sem problema”. O que neste caso não está, à partida, garantido, uma vez que os próprios trabalhos foram levados ilegalmente para Londres, onde foram expostas ao público, pela primeira vez no seu conjunto, no final de Janeiro. A Direcção-Geral do Património Cultural (DGPC) nunca deu autorização de saída das obras, tendo recomendado até que estas fossem classificadas e integradas num museu público português. Foi o secretário de Estado da Cultura, Jorge Barreto Xavier, quem assinou o despacho a 31/01/2014 que "declara extintos os procedimentos administrativos de autorização de expedição das obras”.

Lê-se no acórdão do tribunal que a “expedição das obras é manifestamente ilegal”, não sendo “necessário argumentação sofisticada para concluir que a realização do leilão pela leiloeira Christie's das obras de Joan Miró comprometeria gravemente o cumprimento dos deveres impostos" pela Lei de Bases do Património "e reduziria a nada a concretização dos deveres de protecção do património cultural". Motivo que, levantado “nesta altura”, “obrigam” a Christie’s a retirar as obras.

Ao PÚBLICO, Barreto Xavier destacou apenas que ao tribunal competia determinar se a venda podia ou não avançar e nesta matéria a ilicitude ou não da expedição das obras para Londres é secundária: “O que é dito é paradoxal porque aquilo que eu faço no despacho é determinar que seja aberto na DGPC um processo de contra-ordenação por não terem sido cumpridos os formalismos da expedição”. "É poder ou competência do secretário de Estado da Cultura determinar sobre um assunto que não é da sua competência", questionou mais tarde o responsável da tutela da Cultura numa conferência de imprensa, remetendo a responsabilidade do incumprimento legal para a Parvalorem. “As entidades que fazem a sua expedição não estão sob a minha tutela, são entidades autónomas”, disse Barreto Xavier. Foi aliás este o argumento da juíza Guida Jorge ao rejeitar a providência cautelar, que escreve no acórdão de 19 páginas que a decisão de alineação das 85 obras de Miró não foi uma decisão do Estado mas do conselho de administração da Parvalorem. “Não estamos perante uma decisão administrativa, mas sim um acto de gestão de uma sociedade anónima alheio ao uso de qualquer poder de autoridade pelo que não pode tal acto ser imputado à primeira entidade requerida, o Ministério das Finanças". Em conclusão, sublinha-se ainda que o tribunal não pode emitir "qualquer ordem dirigida a qualquer membro do Governo relativa à forma de exercício dos seus poderes da sua função accionista".

No entanto, Francisco Nogueira Leite rejeitou esta noite, em comunicado enviado ao PÚBLICO, quaisquer dúvidas sobre a legalidade do processo, garantindo que estava contratualizado com a leiloeira que esta trataria de todas as diligências a que o leilão obriga. “O modelo de contrato escolhido responsabiliza a leiloeira por todas as operações até à realização do leilão”, explica o presidente da Parvalorem, especificando que deveria ter sido a Christie’s a “requerer e obter todas as licenças e autorizações necessárias para dar exequibilidade zelosa e cabal a todos os serviços contratados, nomeadamente, no que diz respeito à exportação para venda, embalagem, recolha, transporte, depósito, exposição, leilão, venda e entrega das obras de arte ao respectivo comprador”. Não suportando a Parvalorem e a Parups qualquer encargo, esclarece.

O Estado esperava arrecadar com esta venda cerca de 35 milhões de euros, segundo a avaliação da leiloeira. No entanto, como é habitual nestas situações, no contrato celebrado entre a Christie’s e a Parvalorem e Parups, sociedades criadas no âmbito do Ministério das Finanças para recuperar créditos do BPN e que são proprietárias das obras, existe uma cláusula que pressupõe o pagamento de uma indemnização caso o leilão não aconteça. Não sendo conhecido este contrato, lê-se no acórdão do tribunal que neste caso "a Parvalorem por força do contrato celebrado, constituir-se-á na obrigação de indemnizar a Christie’s em montante cujo valor se situará entre os 4,7 milhões e os 5 milhões de euros”. Uma vez que foi a própria leiloeira a cancelar o leilão não se sabe se esta cláusula se aplicará e Francisco Nogueira Leite não especifica, não excluindo, no entanto, “a possibilidade de se encontrar ainda uma solução conjunta para a situação criada pela decisão da Christie’s, desde que, naturalmente, salvaguarde os interesses que lhes cumpre acautelar, incluindo os do Estado Português, seu accionista”.

E os interesses prioritários não passam para o secretário de Estado da Cultura por manter as obras em Portugal. A prioridade é "minorar a dívida do BPN” e se estas obras não forem alienadas, como inicialmente previsto, "no contexto dos problemas" que nacionalização [do BPN] trouxe, será preciso que "o dinheiro venha de mais algum sítio", garante Barreto Xavier. "Eu calculo que os portugueses não queiram que vamos buscar 35/40 milhões de euros a um outro sítio. À saúde? À educação?”, continuou o responsável, acusando o PS, que esteve na origem da providência cautelar, de não ter feito nada em relação a esta colecção quando esteve no poder. E lembrou: “O Estado recebeu, por decisão do governo do Partido Socialista, a nacionalização do BPN e, por essa via, recebeu também um encargo e uma dívida superior a quatro mil milhões de euros”. “A partir do momento em que se acha que estas obras deviam ficar em território nacional, podiam ser tomadas medidas para perceber como é que elas podiam cá ficar – ora isso nunca aconteceu”, disse, sem deixar de lembrar que, no mesmo período, foram tomadas outras medidas que implicaram investimentos avultados do Estado para outros fins, como é o caso do novo Museu Nacional dos Coches, uma obra orçada em 35 milhões de euros (curiosamente o mesmo valor que o Estado espera arrecadar com a colecção Miró), concluído há mais de um ano (só falta a ponte pedonal) e que continua vazio, à espera da colecção e de data de abertura.

Em resposta, Gabriela Canavilhas garante que o secretário de Estado “não conhece o dossier desta colecção”, explicando que enquanto Ministra da Cultura do Governo de Sócrates não houve oportunidade de fazer alguma coisa para salvaguardar as obras. “Este dossier remonta a Novembro de 2008 e ao longo de 2009 e 2010 foram feitas as diligências, todas elas bastante complexas, no sentido de integrar e identificar o património do BPN”, disse Canavilhas ao PÚBLICO, explicando que só em Dezembro de 2012 é que a colecção ficou na sua totalidade na posse do Estado. A deputada socialista lembrou ainda que nas várias comissões de inquérito ao BPN o Estado foi várias vezes questionado sobre estas obras, sem nunca ter existido uma resposta concreta. “Qual é a dificuldade de manter esta colecção em Portugal? Temos instalações mais do que suficientes para adquiri-la. É preciso perceber que não vamos gastar com esta colecção, o custo infelizmente já foi feito. Já pagamos pelo buraco do BPN portanto esta colecção é nossa e agora deve ser posta a render do ponto de vista cultural”, defendeu ainda a ex-ministra, culpando o primeiro-ministro Pedro Passos Coelho nesta matéria. com Lucinda Canelas

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