Ciência... que ciência?

Ninguém se espante que os governos, há algum tempo, e não só agora, tenham perdido a noção do valor crítico da ciência.

Todos os dias abro o jornal e vejo um artigo sobre a crise da ciência em Portugal, um dos últimos do PÚBLICO até sobre “aquilo que não tem sido dito no debate”. É como se a diminuição da concessão pela FCT das bolsas de estudo e a revolta que provocou entre os que não obtiveram bolsa – o que se compreende, dada a possível desaceleração no desenvolvimento da ciência e dada a lamentável situação de desemprego e de subemprego dos nossos mestres e doutores — fizessem vir ao de cimo todas as questões relativas à ciência.

E nesses discursos a ciência é por vezes apresentada de tal forma que é identificada como mais um “modo de produzir” do que como uma descoberta ou uma nova maneira de interpretar o mundo e a vida. Evidentemente que, neste contexto, ficam a perder, como, de resto, já há muito sucedia, algumas ciências sociais, mas também algumas ciências fundamentais ligadas à natureza e à matemática, mas até algumas tecnologias. O economicismo e o pragmatismo tomaram conta de tudo.

Falemos com franqueza e procuremos, ao menos, sugerir a necessidade de descer ao fundo dos problemas: neste país não há lugar para cientistas, como não há lugar para jornalistas, ou para professores, ou para artistas, ou para arquitectos, ou para electricistas, ou para carpinteiros, ou para comerciantes, ou para empregadas domésticas… Por isso se aconselharam os portugueses a emigrar ou a conseguir qualquer subemprego mal pago e com poucas ou muitas horas de trabalho, que os levassem a sair da situação estatística de “desempregados”. E por isso se utilizam chavões, como “empreendedorismo”, para não falar do desenvolvimento que escasseia ou para mascarar a frustração de muitos que têm apenas o desejo de ter um trabalho honesto, desempenhado e pago honestamente, como cientistas, professores, operários de uma fábrica…

Numa dada altura da minha vida académica (e ainda hoje) fui (e sou) contra o “processo de Bolonha”, não contra as (boas) intenções da “declaração” assinada em 1999 na cidade italiana onde surgiu a primeira universidade europeia, mas pela virtualidade trágica que ela já continha e que se veio a desenvolver. No fundo, está nela a potencialidade de fazer com que os estudantes permaneçam no ensino superior o mais tempo possível. Se a licenciatura — pouco exigente — não serve para nada, caminha-se para o mestrado, naturalmente menos exigente do que no passado. E como o mestrado para nada serve segue-se para o terceiro ciclo, o doutoramento, onde quase todos os estudantes podem entrar, em muitos casos não para obter uma habilitação que lhes dê acesso a um emprego ou à investigação científica, para que se sentem vocacionados, mas porque, com ilusões ou já desiludidos, não conseguiram nenhum trabalho anteriormente. Assim, vão coleccionando graus, passando finalmente da situação de doutorados para pós-doutorados e daí, por vezes, para a “sensação de incompetência” (num processo algo parecido com o “princípio de Peter”), que os leva a ter de procurar um outro lugar fora da ciência ou da profissão que queriam escolher, em Portugal ou no estrangeiro, onde, todavia, em alguns países, há mais possibilidades de trabalho científico.

Este país não é para velhos nem para novos. Os primeiros, no caso dos cientistas, são velhos de mais para pensarem de acordo com o sistema, sendo substituídos pelos mais novos melhor integrados, mas também menos qualificados na escala universitária e menos experientes e que, em certos casos, vão até avaliar os seus mestres, quando estes se propõem ser orientadores de projectos. Quanto aos novos, não sei se esta é “a geração melhor preparada” (como por aí se diz) ou a que possui mais graus e mais cursos. E também não sei se as regras burocráticas para obter bolsas acabam por escolher os melhores (a “nata da nata”, os que fazem “investigação de qualidade”, como dizem os nossos responsáveis) ou aqueles que melhor se integraram no sistema: os que têm mais artigos online e em inglês e que por isso são mais citados, que estiveram em centros que se presume de melhor qualidade (sobretudo no estrangeiro), que souberam criar de forma real ou artificial projectos internacionais… Seja como for, o que é preciso — diz-se — é criar “massa crítica”, mesmo que, individualmente ou em grupo, haja pouca consciência crítica no domínio da ciência, como no domínio da observação do que se passa na sociedade. É por isso que nas acções cívicas quase não há jovens, que procuram de preferência as juventudes partidárias que lhes dão o emprego que a competência não consegue alcançar.

O certo é que nenhum cientista ou aprendiz que se preze deve deixar de reflectir sobre o que anda a fazer neste mundo comandado pela lógica do capital. Todos os grandes cientistas tiveram e têm essa consciência, a começar (se não quisermos recuar a um passado longínquo) em Einstein, que escreveu sobre a crise de 1929 e que, com Arnold Berliner ou com Freud, pensaram numa sociedade de homens de ciência que interrogassem constantemente o mundo do saber, o que hoje pode não suceder, verificando-se sim, em muitas situações, o mundo da ciência e da tecnologia acríticas e dos gestores da sociedade capitalista sem ética. Ao menos que a actual situação provoque entre os jovens cientistas um desejo de pensar para além dos limites do seu ainda incipiente saber.

Temos um governo que deixou de pensar na democracia (política, cívica e social), que a meteu na gaveta em nome da recuperação económica, não em favor da sociedade, mas sim (dizem governantes e seus seguidores) da independência que se perdeu devido à culpa dos “outros”, esforçando-se por criar a ilusão que luta pelo país, que só vê representado no emblema que traz na sua lapela. Por isso ninguém se espante que os governos, há algum tempo, e não só agora, tenham perdido a noção do valor crítico da ciência. Os cientistas e os centros de investigação são para eles cada vez mais “excelentes”, ou não, à medida que se adaptam, ou não, ao seu sistema produtivo. A ciência é para eles também uma ideologia (o que, evidentemente, recusam), que acompanha o seu desejo de constituir uma sociedade à sua medida, à medida dos regulamentos que engendram, com os seus próprios “cientistas de eleição”.

Ciência… que ciência? Será preciso começar por aqui, em nome dos verdadeiros cientistas e daqueles aprendizes que humildemente procuram desenvolver o saber que foram colhendo ao longo da vida (já longa para uns e ainda curta para outros), não tanto através de graus obtidos, mas do trabalho duro no laboratório, no arquivo, na biblioteca, no seu labor (por vezes solitário e fora de horas) em casa à frente de livros e de folhas de papel ou do computador… A olhar sempre criticamente para  a sociedade em que vivem.

Professor catedrático jubilado da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra
 
 
 
 

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