No Ocidente, "podemos aprender muito com os pobres" na área da saúde

Nigel Crisp é um lorde inglês que quer virar o mundo de pernas para o ar nas políticas públicas de saúde. A Gulbenkian pediu-lhe que durante dois anos estudasse a fundo o nosso sistema. A conferência desta segunda-feira surge a seis meses do fim do trabalho

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Idosos com doenças crónicas absorvem 70 a 80% dos recursos com saúde, estimou Nigel Crisp.

Há um ano que Nigel Crisp, membro independente da Câmara dos Lordes britânica, passou a visitar Portugal com frequência. Não para apanhar sol, como fazia antes, mas para estudar o sistema de saúde português.

Fala de “inovação reversível”, “frugal” e “Jugaad”, a filosofia low cost dos indianos. Nos governos do primeiro-ministro trabalhista Tony Blair, foi director do Serviço Nacional de Saúde — o maior sistema de saúde do mundo, com 1,3 milhões de funcionários — e secretário permanente do Departamento de Saúde, onde lançou um profundo plano de reformas. Em 2010, escreveu Turning the world upside down - the search for global health in the 21st Century. Dá aulas em Harvard, integra o Kings Advisory Board on Global Health e trabalha na aliança Zâmbia-Reino Unido para a saúde. Coordena há um ano a Plataforma Gulbenkian Health in Portugal: a challenge for the future, no âmbito da qual se realiza esta segunda-feira uma conferência durante todo o dia na Gulbenkian.

O ponto de partida do seu projecto Turning the World Upside Down é que o Ocidente tem muito a aprender com os países pobres. Há séculos que os ricos se posicionam como “os que ensinam”. Na Europa, qual tem sido a reacção quando propõe esta abordagem?
A lição fundamental que aprendemos com os países pobres é que pessoas criativas que não têm meios usam as comunidades para dar resposta aos problemas da saúde. Em particular, fazem um uso muito maior das famílias e dos leigos, não separam a saúde das outras questões (como a educação) e põem em prática sistemas informais de prestação de cuidados. Uma coisa que nós, no Ocidente, vamos ter de aprender ou reaprender. Os sistemas e os profissionais de saúde não vão poder fazer tudo por nós. Temos de fazer mais por nós próprios.
Isto é particularmente importante porque as nossas necessidades de saúde mudaram nos últimos 30 anos. Enfrentamos uma epidemia de doenças crónicas de longo prazo — as chamadas doenças sem notificação obrigatória — como diabetes, problemas cardíacos e cancros. Quase 90% das mortes em Portugal são por causa dessas doenças. Estão sobretudo associadas ao estilo de vida (dieta, exercício físico, tabaco) e ao envelhecimento. É bom lembrar que a diabetes de tipo 2 pode ser evitada e, em alguns casos, através de mudanças de estilo de vida. Podemos aprender muito com a forma como as pessoas em países pobres usam a comunidade. Esta é uma aprendizagem com dois sentidos. Nós temos muito a oferecer aos países pobres, mas eles também têm muito a oferecer-nos. As ideias têm sido bem recebidas nos países ricos. Recebo muitas ideias de ocidentais que trabalharam em África ou na Índia. Isto é comum noutras indústrias. Há cada vez mais negócios e investigação sobre a “inovação reversível”, “inovação frugal” e, da Índia, a “inovação Jugaad”. A necessidade faz o engenho. As pessoas pobres conseguem ser muito inovadoras!

Já há resultados de uma dessas experiências  de “inovação reversível”, em que é o Reino Unido a aprender com as técnicas brasileiras?
Esse trabalho está a começar. A ligação foi feita entre um médico britânico que trabalha no Brasil há uns anos e que se apercebeu do muito que estava a aprender.

É um caso isolado?
O projecto das equipas de saúde comunitárias no Harlem, Nova Iorque, está mais desenvolvido. São leigos que vêm de ginásios, clubes desportivos e centros de fitness que dão apoio e fazem intervenções práticas na área da saúde aos mais vulneráveis da cidade. Os seus papéis e funções foram definidos pelo célebre economista Jeffery Sachs.Mas há muitos outros exemplos: a forma como no Ocidente se trata a doença [ortopédica] do pé boto veio do Malawi. Um modelo usado para combater a tuberculose veio do Uganda. A solução para a hidratação dos bebés chegou do Bangladesh.

Estuda a saúde em Portugal há mais de um ano. Quando começou, o que procurava?
Queria perceber tanto a cultura como o sistema. Há diferentes tipos de sistemas de saúde no mundo que reflectem o que diferentes sociedades valorizam. Também queria perceber a natureza das doenças que afectam a população, a qualidade dos recursos e os seus resultados.

Quais foram as grandes surpresas, boas e más?
Fiquei muito impressionado com o compromisso português em relação ao Serviço Nacional de Saúde — e em haver um sistema de “solidariedade social”. Impressionam-me os baixos níveis de mortalidade infantil e a qualidade de muitos serviços. E o interesse e qualidade do diálogo em torno da saúde.

Fiquei um pouco surpreendido com a complexidade do sistema — com os vários sub-sistemas — e com o facto de algumas políticas terem sido introduzidas mas não totalmente implementadas. Por que razão, por exemplo, têm três sistemas diferentes de acreditação de hospitais? Há também falta de dados consistentes para tomar decisões. Surpreendeu-me o alto nível de diabetes, não entendo por que é que parecem ser os mais elevados da Europa e continuam a crescer rapidamente. Vocês têm um estilo de vida invejável em Portugal — e por isso os britânicos adoram vir cá! A começar por mim...

Consegue identificar cinco prioridades?
1. Diabetes: têm de reduzir a taxa de crescimento com urgência; 2. Há boas políticas para lidar com o grande aumento de doenças sem notificação obrigatória; os serviços precisam de ser melhor organizados; 3. Desenvolver os cuidados primários e a nível das comunidades. Há espaço para melhorarem usando novas tecnologias e abordagens que permitam novos tipos de serviços baseados nas comunidades e nas famílias; 4. Ouvi falar de inconsistência regional ao nível da qualidade de alguns serviços. Preciso de perceber isto melhor; 5. Simplificar o sistema.

Que avaliação faz do sistema depois de três anos de crise?
A crise financeira provoca mudanças, mas o problema central no vosso país, como no meu, é que o perfil das doenças mudou. Hoje, 90% das mortes são devidas a doenças sem notificação obrigatória. Não era assim há 40 anos quando o vosso sistema foi desenhado. Este é o nosso principal problema. É uma crise de desenvolvimento lento, mas que tem de ser enfrentada.

Que ideias inovadoras “de fora” vai propor para Portugal?
Vamos publicar as nossas recomendações no fim do ano. Mas tenho a certeza de que vamos encontrar bons exemplos em Portugal que devem ser copiados. Portugal tem muito com que todos podemos aprender.


Como é que um sistema como o do registo electrónico de saúde dinamarquês pode ajudar o português?
Neste momento, na Dinamarca, doentes e médicos têm um acesso electrónico a todos os dados de saúde e podem ver toda a história de raios-x, exames, etc. Para o doente, isso melhora a compreensão sobre o que se está a passar; ao médico ajuda a tomar decisões. Em Portugal há a ideia de se criar um sistema destes e por isso vamos ouvir o Ministério da Saúde sobre isso.

O que significa “promover a saúde” como prioridade, que apresenta como “ideia inovadora”?
Significa garantir que os impactos de saúde são tomados em conta no desenvolvimento de qualquer política, seja educação, transportes ou emprego. Ou seja, que em qualquer destes casos temos de perguntar: que impacto vai ter esta política na saúde? Na Escócia, foi montado um programa transversal a todos os departamentos públicos para coordenar políticas que afectavam os primeiros anos da vida de uma criança, desde a concepção até aos cinco anos, para garantir que o país é “o melhor lugar do mundo para crescer”.

Numa das suas visitas anteriores, disse que um dos principais problemas é os sistemas de saúde tratarem todos de forma igual.
A questão é que 5% da população — normalmente pessoas mais velhas com duas ou três doenças crónicas — usam 40% dos recursos do Serviço Nacional de Saúde, e 20% usam 70%. A maior parte de nós, de meia idade, quase não usa o sistema de saúde. Temos de tratar estes grupos diferentes de uma forma diferente — os que usam o sistema com frequência precisam de muito mais atenção pessoal para poderem coordenar melhor a sua saúde. Muitos de nós, por outro lado, poderemos apenas precisar de informação, check-ups e respostas para pequenos problemas. Não devemos tratar todos da mesma forma.

Como é que isto se muda?
O Serviço Nacional de Saúde britânico tenta fazer isto. Em muitas partes do país já identificou os 5% de “utilizadores frequentes” e atribuiu-lhes gestores. O doente ganha apoio e coordenação e acaba-se com duplicação e desperdício. Também há muitos canais através dos quais os doentes têm acesso aos serviços — desde centros de cuidados primários ambulatórios em estações de comboios a unidades de pequenos cuidados. E tirou-se pressão dos hospitais para a internet e os serviços telefónicos.

É um defensor da ideia de os doentes serem “parceiros” dos médicos, como acontece na Holanda. Como é que isso funciona?
A ideia é os doentes e os médicos trabalharem juntos para fazerem escolhas e gerirem os cuidados de saúde. Numa doença como o Parkinson, há muitas escolhas e muitos problemas, tanto sociais como médicos, e normalmente os doentes conhecem muito bem a sua doença, e por isso podem ajudar até a formar médicos e enfermeiros. A diabetes é um bom exemplo de como um doente pode dar 50 horas ou mais de auto-tratamento para cada hora que é tratado por profissionais. Tanto o auto-tratamento como o tratamento profissional são vitais.

No seu país o papel dos enfermeiros hospitalares ganhou importância. Esse debate existe em Portugal, mas com forte oposição dos médicos.
Há imensos casos em todo o mundo de enfermeiros a assumirem com muito sucesso aquilo a que nós chamamos em Inglaterra “papéis prolongados”. É no entanto essencial que isso seja feito de forma muito sistemática e rigorosa. Por cada alteração que fizemos [de transferência de competências] montámos um programa que analisava os dados, os protocolos, a formação, e garantia que havia supervisão adequada.

Os resultados mostram que tivemos sucesso. Essas mudanças foram sobretudo lideradas por médicos. No Reino Unido as Ordens de Médicos têm sido muito cautelosas mas acabaram por ser convencidas pelos resultados. Com formação mais sofisticada, os médicos deviam fazer as coisas que só eles sabem fazer. Se não for assim, é um desperdício do seu tempo e conhecimento.

Como se enfrentam os interesses corporativos sem perder os profissionais, sem os quais as reformas não acontecem?
Em todas as profissões, há pessoas motivadas por interesses individuais, salários ou estatuto. Mas essa não é a norma na medicina. Conheço muitos médicos e a vasta maioria foi para medicina para ajudar os outros. Fiquei muitíssimo bem impressionado com os que já conheci em Portugal. Um facto decisivo em Inglaterra foi termos envolvido os médicos no processo de decisão. Muitas vezes, eles trazem soluções mais radicais e melhores do que os leigos.

É realista tentar aplicar ideias implementadas em países muito mais ricos e eficientes do que Portugal?
Não se trata de dinheiro. A Suécia tem um sistema de saúde relativamente barato com enormes resultados. Os EUA têm um sistema extremamente caro e presta maus serviços a uma parte grande da sua população. Não se pode copiar o que os outros fizeram, mas pode-se aprender a partir dos seus exemplos e adaptar as ideias às nossas circunstâncias e cultura. Os portugueses precisam de desenhar soluções portuguesas. Por isso a maior parte da pessoas a trabalhar na nossa plataforma são portuguesas. Queremos ajudar a criar soluções portuguesas inspiradas no saber internacional.

Um dos desafios hoje é tornar o ServiçoNacional de Saúde sustentável. Medidas como as que aqui falámos seriam suficientes?
Temos a preocupação da sustentabilidade e vamos responder a essa questão no fim do nosso estudo. Mas sustentabilidade não tem a ver apenas com dinheiro, mas com ter os profissionais certos, manter os sistemas de cuidados informais e sermos resilientes às crises e aos choques.

Em Portugal, todos os ministros da saúde dos últimos 20 anos concordaram com a ideia de o ideal seria haver uma separação clara entre os médicos que trabalham no sistema público e no privado. Mas nenhum avançou porque era muito caro. Esta questão é decisiva para melhorar o nosso sistema de saúde?
Em Inglaterra, tentámos duas vezes a separação total sem sucesso. Tivemos muito melhores resultados quando optámos por definir regras muito apertadas sobre como um médico pode trabalhar nos dois sectores, reduzindo os conflitos de interesses, tornado obrigatório a declaração de potenciais conflitos de interesse e monitorizando-o muito bem. Funciona e deixou de ser uma questão pública. Mas tem de ser feito de forma aberta e transparente e de ser bem monitorizado e com penas à mínima infracção.

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