Fusão Fiat-Chrysler: algumas conclusões “políticas”

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Para falar de crises políticas é por vezes aconselhável sair da política e olhar os arredores — sociedades e economias. A política goza de autonomia mas não é um jogo acima das “realidades”. Por exemplo: nos últimos seis anos, a Itália perdeu quase um quarto da sua produção industrial e mais de um milhão de postos de trabalho.

Não é apenas efeito da crise mundial. A economia italiana está estagnada desde 2000 e perde regularmente competitividade. Está agora ameaçada por nova vaga de deslocalizações — a multinacional sueca Eletrolux diz só poder manter-se na Itália com reduções de salários — análogos aos que paga na Polónia. Em Janeiro, a taxa de desemprego, durante muitos anos artificialmente estabilizada, atingiu o recorde de 12,7%. Também o desemprego jovem bateu o recorde: 41,6%.

Nasce a FCA
Esta semana, um outro “acontecimento industrial” superou a política nas primeiras páginas. A Fiat e a Chrysler consumaram a sua fusão: nasceu a Fiat Chrysler Automobile (FCA). Terá sede legal na Holanda, sede fiscal na Grã-Bretanha e será cotada em Nova Iorque. O presidente do grupo, John Elkann, neto de Gianni Agnelli, permanecerá simbolicamente sedeado em Turim.

Giuseppe Berta, historiador da indústria e do automóvel, anota que desaparece a FIAT dos Agnelli — Fabbrica Italiana Automobili Torino. “Nasce um novo grupo, sem um pólo, porque ao contrário de multinacionais como a Toyota, japonesa, ou a Volkswagen, alemã, não se identificará nem com a Itália nem com os EUA. A novidade é que é, ou ambiciona ser, um grupo global.” É um caso atípico, em que o “grande” não devora o “pequeno”, nem o inverso.

A meta é subir a gama da produção e a expansão na Ásia, o maior mercado do mundo. A produção do automóvel barato e de massas, especialização da FIAT, deixou de ser rentável na Europa. A Fiat dispõe de marcas de luxo e alta tecnologia, como a Ferrari ou a Maserati, mas faltam-lhe os modelos de gama alta, em que dominam as marcas alemãs. Por outro lado, a Fiat não tinha dimensão para sobreviver: hoje, é necessário atingir o patamar de 6 milhões de viaturas por ano.

Houve reacções — designadamente sindicais — contra a “desnacionalização” da Fiat. Também nos EUA alguns jornais lamentaram que a Chrysler tenha passado para “as mãos de italianos”. O primeiro-ministro, Enrico Letta, ou o presidente de Turim, Piero Fassino, ambos do Partido Democrático, explicaram que nem a fusão nem a mudança da sede para a Holanda pesam perante a manutenção do emprego e a salvaguarda do Made in Italy. Pergunta um economista: “É melhor uma Fiat internacional florescente ou uma Fiat nacional moribunda?”

Desaparece, sim, uma época: “Os Agnelli são a Fiat, a Fiat é Turim, Turim é a Itália.” A sua maior fábrica, Mirafiori, em Turim, teve outrora 40.000 trabalhadores. Hoje tem menos de 6.000. Mas a Fiat continua a ser o maior empregador privado do país.

UAW e FIOM
Convém recordar que, em 2004-2005, a Fiat estava praticamente falida, enquanto a crise de 2008 trouxe a ruína das americanas Chrysler e da GM, que só evitaram a falência por intervenção de Obama que teve a coragem de salvar o automóvel americano.

A candidatura da Fiat para controlar a Chrysler respondia aos requisitos exigidos em termos de complementaridade industrial. Mas o segredo do êxito foi outro: houve uma dura negociação – não com os credores mas com o sindicato do automóvel americano, o United Automobile Workers (UAW). O sindicato correu um alto risco para salvar o emprego: o fundo de pensões da UAW-Chrysler adquiriu 41,5% do capital. A Fiat assumiu o controlo e pagou nos últimos dois anos o empréstimo do Estado americano e o investimento do sindicato. Foi uma operação de “tudo ou nada” pilotada pelo CEO da Fiat, Sergio Marchionne.

Uma das condições postas pela Casa Branca para salvar a Chrysler e a GM foi a adopção de um modelo de relações industriais mais próximo do da Toyota, de forma a elevar a produtividade e a competitividade de Detroit. O automóvel americano iniciou já a recuperação. Também a UAW, liderada por Bob King, saiu reforçada. Acordou, em Janeiro, com a Volkswagen a presença na sua fábrica no Tennessee, rompendo um tabu – é o primeiro fabricante estrangeiro a aceitar a sindicalização dos operários.

Após o acordo com a Chrysler, Marchionne propôs aos trabalhadores e sindicatos italianos uma reorganização da produção e uma transformação do contrato. O objectivo não era baixar salários — factor secundário no automóvel — mas flexibilizar o trabalho.

O primeiro teste surge com a modernização da fábrica de Pomigliano d’Arco, perto de Nápoles, salvaguardando 5500 postos de trabalho directos. Era uma fábrica de baixíssima produtividade e com recordes de absentismo. Era uma “relocalização”: Pomigliano passaria a produzir o Panda, até então fabricado na Polónia, sob condição de garantir uma produtividade equivalente. A Fiat exigia um sistema de laboração contínua (18 turnos por semana) e um “pacto social” que, entre outras coisas, interditava o uso da greve para impedir o trabalho extraordinário.

São as regras com que se trabalha na Chrysler e que o sindicato garante. Mas, na Itália, Marchionne encontrou a oposição frontal da principal federação sindical metalúrgica, a FIOM. Foi acusado de querer impor “ritmos polacos aos italianos” e de violar a Constituição ao restringir o direito de greve. O novo contrato foi aceite pelas outras federações metalúrgicas e aprovado pelos operários de Pomigliano, por referendo, em Junho de 2010 (ver Fátima Patriarca, “A Batalha de Pomigliano”, em Estado, Regimes e Revoluções – Estudos em Homenagem a Manuel de Lucena, ICS, 2012).

Seguiram-se meses de “guerrilha” em que a FIOM assumiu uma postura radical — preferindo o risco da deslocalização das fábricas e destruição de postos de trabalho a abdicar de dogmas. Acabou derrotada no referendo em Mirafiori, o “coração operário italiano”. Ficou num beco sem saída e perdeu influência.

Conclusão moral
A Itália tem grandes trunfos para evitar a desindustrialização. Mas com duas condições: subir de patamar tecnológico e reformar as relações industriais. Pode perder a Eletrolux mas não o automóvel.

O economista Luigi Zingales propõe uma conclusão moral: “A nossa raiva não se deve dirigir contra a Fiat, mas contra nós próprios por termos tolerado (senão favorecido) um sistema económico que premeia os piores e exclui os melhores.

Uma Peggiocracia (piorocracia) que dá rendas a quem tem poder e que destrói a própria esperança nos outros. (…) Esperemos que a partida da Fiat funcione como um sinal de alarme: chegou o tempo das reformas radicais.”

Tal como na política italiana, está em causa “a imobilidade crónica do sistema”. Tudo se resume a perceber que “o mundo mudou” e a tirar as consequências.

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