A morte natural da praxe

Penso que é possível olhar para o debate numa perspectiva ligeiramente diferente e fazer a pergunta: o que será o futuro da praxe?

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Adriano Miranda

A praxe suscita tanto interesse na nossa comunidade que significa que ainda é relevante. Uns defendem-na porque integra, porque é tradição, porque é um ritual, porque ajuda a crescer e a compreender o mundo cão. Outros atacam-na porque é humilhante, desrespeitadora dos direitos humanos, porque prega o dogmatismo e propicia o abuso de poder.

Depois ainda se discutem as diferentes praxes e os seus diferentes executores (que uns são bons e outros maus) e a autonomia e a responsabilização individuais (dos que praxam e dos que são praxados), dizendo que nas decisões de adultos livres e responsáveis (afinal um estudante universitário já pode votar, conduzir e casar) não se deve interferir muito.

E há a inevitável polarização: a discussão entre as partes contrárias escala facilmente para o insulto e para a violência posto que uns consideram os outros irracionais e intolerantes. Essa senda polarizadora não me interessa, posto que os berros e os insultos não fazem a humanidade avançar.

Mas penso que é possível olhar para este tema numa perspectiva ligeiramente diferente e fazer a pergunta: o que será o futuro da praxe?

Quanto ao passado, já sabemos. Em Portugal, descende de uma longa tradição (maioritariamente coimbrã) com raízes medievais (a associação das praxes ao latim e à igreja não é casualidade), em tempos em que a universidade era só para uma minoria e era um marco transformador nas vidas das pessoas (e por isso mais ritualizado). Nesse tempo, praxe rimava com universidade pois que o espírito de obediência às hierarquias e o dogmatismo e fundamentalismo eram comuns entre a praxe e a universidade (o temor reverencial aos professores, o calar e ouvir, o não criticar o que estava a ser ensinado ou o medo perante os funcionários auxiliares eram vivências universitárias que tinham ressonância na praxe).

Mas será que, hoje, praxe continua a rimar com universidade? Penso que não. E nos casos em que continua, o mal não está na praxe mas na universidade (significa que essa universidade não está sintonizada com a modernidade). Apesar de tudo (da lentidão com que se transformam as instituições em Portugal) a universidade de hoje já está muito diferente da do passado: temos Bolonha (que nos cursos de três anos torna ridícula a hierarquia praxista, para além de obrigar os estudantes a, rapidamente, pensarem na vida profissional), temos o Erasmus (que faz com que os estudantes conheçam universidades estrangeiras, onde a praxe não existe e onde ninguém sente a falta dela), temos professores doutorados no estrangeiro, temos alunos internacionais (que olham de lado para a nossa praxe). Esta nova universidade vai, naturalmente, matando a praxe.

E uma coisa é certa. Há duas características da praxe que a tornam inconciliáveis com a universidade: o seu dogmatismo e o seu sistema de mérito. A universidade, que tem que ser o santuário do pensamento crítico, não pode admitir os dogmas. Quanto ao sistema de mérito, o da praxe é o inverso da universidade: chega ao topo da hierarquia aquele que tem mais dificuldade em concluir o curso, enquanto na universidade ganha o melhor aluno (para a praxe ser compatível com a universidade teria que tirar as orelhas de burro dos caloiros e coloca-las no dux).

O futuro pode bem trazer reitores que expulsem as praxes dos campus, caloiros que não aceitem a praxe e estudantes que organizem actividades alternativas de integração. Não é difícil adivinhar que a praxe vai morrer, desparecer nas brumas do tempo (tudo o que nasce morre). Mas talvez seja é mais depressa do que algumas pessoas estão a contar…

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