“Não está registado em nenhum mapa. Os lugares verdadeiros nunca o estão”, escreveu Herman Melville. E, de facto, é na cartografia da nossa imaginação que construímos o mundo — as viagens físicas apenas sancionam essa geografia imaginária. Alberto Manguel, no seu Dicionário de Lugares Imaginários, nota que Cristóvão Colombo, antes de se fazer ao mar, já conhecia os seres prodigiosos do Novo Mundo pois tinha lido Aristóteles, Plínio, e os imaginativos bestiários medievais, de tal maneira que na sua terceira viagem, e estando ao largo da costa da Guiné, ao avistar manatins semelhantes a focas, anotou no seu diário de bordo (com mal disfarçado desapontamento): “Hoje vimos três sereias aproximarem-se do costado da embarcação, mas não tão belas como as descrevem”. Qualquer relato de viagens é sempre uma espécie de cartografia mental do seu autor, pois é o avistamento do “primeiro horizonte” que vai tornar sólidas, ou não, as suas representações imaginárias, as suas ideias preconcebidas do espaço e do tempo da viagem.
Ora, foi precisamente sobre um desses lugares desconhecidos dos mapas, a cidade-estado de Hav, localizada algures numa península do Mediterrâneo oriental, que a inglesa Jan Morris (n. 1926) escreveu dois romances (em jeito de livros de viagem) — Últimas Cartas de Hav e Hav dos Mirmidões — agora reunidos sob o título Hav na colecção dirigida por Carlos Vaz Marques na Tinta-da-China. Numa prosa elegante e erudita, Morris construiu uma narrativa sobre um lugar labiríntico, que parece existir fora do tempo, mas que surge aqui tão verídico e vívido como os descritos nos livros de Paul Theroux ou de Paul Bowles.
Hav tem uma história gloriosa e complexa. Cidade de cúpulas, minaretes, igrejas cristãs, templos budistas e hindus, uma sinagoga e um pagode, parece ter sido fundada por tribos celtas ou pelos antigos jónicos (uma lenda atribui a sua fundação a Aquiles). Foi sucessivamente tomada pelos gregos, pelos espartanos, pelos turcos seljúcidas, pelos cruzados, por Saladino. Durante quatro séculos passou pela cidade a Rota da Seda, sendo visitada por todo o tipo de mercadores. Durante meio século, a seguir às Guerras Napoleónicas, fez parte do Império Britânico, depois do russo, e no período entre as duas grandes guerras mundiais teve um mandato tripartido (França, Itália e Alemanha) da Sociedade das Nações. Descrita por Ibn Battuta e por Marco Polo, é também referida de maneira subliminar por São Paulo na Epístola aos Gálatas e por D. H. Lawrence. Freud, enquanto estudava enguias, escreveu lá um poema. Autores como Hemingway, Thomas Mann, Cavafy e Joyce também a visitaram. Surgem no texto muitos outros visitantes famosos, como Bismarck, Nijinsky, as princesas Grace e Diana, e também Hitler (quanto a este não há certezas). A maioria dos visitantes chega de comboio (carruagens ainda dos tempos dos Caminhos de Ferro Imperiais Russos), depois de o mesmo ter percorrido espirais pelo penhasco de calcário abaixo. A Norte ficam as salinas e aquelas colinas baixas que Schliemann pensou que fossem as ruínas de Tróia. É nos subúrbios proletários que vivem os operários turcos, árabes, gregos, africanos e arménios. Na encosta ocidental vivem os trogloditas kretevs. À semelhança de uma Babel vitoriosa, muitas são as línguas em que as pessoas se entendem, “não só o turco, mas também o italiano, o francês, o árabe, o inglês em caso de necessidade, e até mesmo o chinês”. Também a sua fauna e a sua flora são singulares, com destaque para as “framboesas-da-neve”, um fruto que brota nas fendas durante a noite quando a ultima neve derrete.
Neste cruzamento de tempos históricos e de espaços, Jan Morris escreveu uma alegoria do mundo. Hav, à semelhança de outras cidades erguidas num labirinto de culturas (apesar de tudo a outra escala), surge ao leitor como uma espécie de lugar nostálgico de um tempo que nunca conseguiu sair de uma cartografia afectiva. É a própria autora que no epílogo confessa: “Quando inicialmente contemplei a cidade-estado de Hav, trazia na ideia lugares como Trieste, Danzig ou Beirute, cujas personalidades foram moldadas pelos longos processos da História.”
Esse sentimento de nostalgia e perda, e ao mesmo tempo também de choque, acentua-se na segunda parte deste livro (que pode ser lida como uma espécie de “alegoria da modernidade”). Se a primeira parte tinha lugar em seis meses de 1985, a segunda visita da narradora a Hav acontece 20 anos depois (o período que mediou entre a publicação dos dois livros) em seis dias de 2005, já depois dos acontecimentos que ficaram conhecidos por “a Intervenção”. A cidade é agora governada por um bando de fanáticos, e muita coisa mudou. Os trogloditas das cavernas foram forçados a mudar-se para blocos de apartamentos higienizados, as framboesas-da-neve foram geneticamente modificadas, todas as perguntas têm de ser enviadas ao Departamento de Ideologia…
Hav é uma singularidade literária escrita numa prosa resplandecente como a singular luz da cidade; um livro ficcional (por onde se move, da primeira à ultima página, o fantasma de Jorge Luís Borges) que — obviamente a um outro nível que não o histórico — ombreia com o Breviário Mediterrânico de Predrag Matvejevic e com muitas páginas de Braudel.
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