Dois mitos da Justiça portuguesa

A sessão solene de abertura do Ano Judicial 2014 é na quarta-feira. Irá alguém dizer o que é preciso?

Numa entrevista ao Expresso, este fim-de-semana, Henriques Gaspar, Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, diz que “há uma dissimetria demasiado intensa entre a realidade e a percepção que a comunicação social tem da Justiça”. O problema não está na Justiça, mas nos jornalistas.

Recentes ensaios — como O Governo da Justiça, de Nuno Garoupa, Políticas públicas de Justiça, de Graça Fonseca e Mariana Vieira da Silva, Os atrasos da Justiça, de Conceição Gomes, Mitos e realidades do sistema de justiça, de João Tiago Silveira, ou o Estado de direito e qualidade da democracia, de Luís de Sousa — mostram que a realidade-realidade é outra.

À esquerda e à direita, entre “empresários, gestores, economistas, não operadores e público em geral”, como escreve Daniel Proença de Carvalho num outro ensaio, todos concordam que há uma crise da Justiça em Portugal.

Garoupa, no seu texto editado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, resume assim o estado da Justiça portuguesa: “Corporativismo nas magistraturas; falta de planeamento, avaliação e realismo legislativo; divórcio entre os tribunais e a sociedade; congestão com mais de um milhão de processos pendentes.”

Claro que nem tudo está mal e há medidas positivas recentes. Uma delas foi o esforço de descongestionamento criado com os Julgados de Paz, lançados em 2002 — no total, 70 mil processos foram resolvidos através deste instrumento, muito contestado, claro, pelo anterior e pela actual bastonária da Ordem dos Advogados. Agora, algumas das medidas impostas pela troika vão no mesmo sentido de se criarem novas formas de resolução alternativa de conflitos, incluindo os fiscais.

Estranhamente, o discurso dos “agentes” do sector reduz quase tudo a duas coisas: há cada vez mais processos a entrarem nos tribunais e os recursos humanos não chegam. Não é bem assim. Senão vejamos: há hoje quatro vezes mais juízes e magistrados do Ministério Público do que havia em 1974 (e o dobro de 1990) e cada magistrado tem menos 20% de processos do que tinha há 40 anos. Mas as pendências por magistrado duplicaram face a 1974 (e são mais de 50% do que eram nos anos 1990).

Sobre os processos, sabemos pelos números oficiais que o padrão se mantém mais ou menos estável desde 1994. Sabemos também que temos o dobro dos tribunais da Suécia por 100 mil habitantes, mas que demoramos mais 233 dias a resolver os processos. Dirão: não nos podemos comparar aos suecos. Pois bem, façamo-lo com os espanhóis: Espanha tem também metade dos tribunais e demora menos 134 dias a fechar os casos. Ou com a Eslováquia. Ou com...

Até hoje, não fomos capazes de iniciar uma reforma de fundo e levá-la até ao fim. Medidas avulsas seguem-se a medidas avulsas. A sessão solene de abertura do Ano Judicial 2014 é esta quarta-feira no belo Salão Nobre do Supremo Tribunal de Justiça. Irá alguém dizer o que é preciso?

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