Moradores do Aleixo aguardam realojamentos “com a chuva dentro de casa”

A demolição das torres é uma certeza, a data uma verdadeira incógnita. Enquanto não há decisão, habitantes do Aleixo vivem com os bens empacotados e em muitas casas as condições são já “insuportáveis”.

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A espera decorre em casas cujas condições de salubridade pioraram, nos últimos meses Paulo Pimenta

Há caixas de cartão empilhadas à espera de mudanças nas casas dos moradores da torre 3 do Aleixo, no Porto. É assim desde Abril de 2013, quando a demolição da segunda torre do bairro deu aos habitantes a certeza de que o processo não pararia. Os realojamentos dos moradores — sobretudo os da torre 3, que deverá ser a próxima a tombar, mas também alguns das torres 2 e 1 — noutros bairros da cidade foram mesmo iniciados, mas o processo congelou com a entrada do novo executivo, depois das eleições de 29 de Setembro do ano passado.

Sem respostas da Câmara Municipal do Porto, Cidália Lima e os nove familiares com quem partilha um T3 no primeiro andar da torre 3 desesperam pela mudança que nem sempre desejaram. “Eu gosto muito da minha casa, é um espaço bem grande comparado com outros bairros, e por mim o Aleixo não acabava nunca”, diz emocionada, ao lado dos dois netos mais novos, de 16 e quatro meses, com quem vive a correr para o médico: “Os miúdos estão sempre doentes, com o frio, a chuva, a humidade.  E eu sinto uma tristeza por olhar para isto. Nós tínhamos umas ricas casas...”.

O pretérito perfeito do verbo passou a ser usado quando, a meio do ano passado, a torre começou a perder habitantes. Quem foi saindo levou consigo tudo o que foi acrescentando aos apartamentos ao longo dos anos em que lá viveu e isso incluiu, em vários casos, as janelas. Resultado? A chuva começou a entrar nas casas vazias e por lá foi descendo para os pisos abaixo. “Estamos à espera com a chuva dentro de casa”, lamenta a portuense de 55 anos.

Dona Berta, como é conhecida por ali, desdobra-se em desculpas pelo estado da sua casa. Não importa quantas vezes se limpe: não há como combater a chuva e a humidade a entranhar-se por todo o lado. “A pobreza não tem nada com a limpeza. A gente limpa todos os dias, mas todos os dias está assim”, conta ao lado de Feliciano Gomes, o marido de 84 anos com quem chegou a viver em Moçambique.

O intenso cheiro a humidade rapidamente se entranha nas roupas de quem entra, dificilmente sai de tudo o que está na casa. Berta mostra a almofada de um dos dois netos menores que vivem no seu T3. Está húmida, coberta de bolor. No quarto onde dormem o colchão está molhado, os tectos de quase toda a casa estão negros. “Isto não é uma casa, é um barracão”, diz com os olhos azuis rasos de água.

A câmara já propôs mudá-la para um T1 com o marido, mas Berta recusa-se a deixar os dois netos, o filho e a nora para trás. É que o jovem casal, desempregado, já requereu uma casa por quatro vezes, mas continua sem resposta. Já lá vão cinco anos. “O que vou fazer? Deixar o meu filho na rua? Nenhuma mãe fazia isso.”

Pais e filhos dormem num pequeno quarto, atulhado com uma cama e mais dois colchões no chão. Quando o dia espreita, levantam os colchões, envolvem-nos em lençóis e plásticos para evitar que fiquem demasiado molhados e assim fica até à noite. Quando tudo se repete. “Isto não é vida, não acha?”, suspira a nora, que anseia a saída para uma casa nova com os filhos e o marido.

No piso 3 da torre, a família de Berta sobrevive num T3 agora transformado em T2 porque num dos quartos “chove como se estivéssemos na rua”. “Isto foi tudo muito mal feito. Não deviam ter deixado tirar as janelas. Eu estou há dois meses com gripe, não passa. De noite a gente vira-se na cama e sente a roupa molhada”, diz ao PÚBLICO a habitante de 80 anos que sofre de tiroidite e tem já bastante dificuldade em mover-se. “Se não me tiram este ano também não me tiram mais, hei-de morrer aqui”, diz num tom de voz derrotado. 

No mesmo piso, Teresa de Jesus, 71 anos, repete o lamento: a humidade é “insuportável”e a ausência de respostas por parte da autarquia, onde já foi tantas vezes que perdeu a conta, “desesperante”. A vida dentro das caixas de cartão, cuidadosamente empilhadas à espera do dia da saída, parece-lhe não ter já um final feliz à espera. Na casa impecavelmente limpa é impossível disfarçar a humidade entranhada nos tectos. Há divisões onde se respira com dificuldade. E, ainda assim, a casa preenchida à custa de muitas horas de trabalho e mantida agora com reformas curtas deixará saudades. “Não tinha nada quando me mudei para cá. Trabalhei muito, até aos 65 anos. Muitas horas por dia. Fiz tudo para construir aquilo que tenho. Investi tudo nesta casa: os móveis, toda a mobília é minha. E agora? O que vou fazer às minhas coisas quando me passarem para um T2 e não couber lá metade?”, questiona.

As lágrimas são de desespero pela situação actual mas também de quem não se conforma por ver as torres cair como uma mesa a que cortam as pernas. Apesar do receio generalizado em relação ao bairro e do consumo de droga visível em alguns espaços, sobretudo junto à torre 1, o Aleixo já foi um lugar decente para se viver, asseguram. “O bairro do Aleixo tem mais fama do que outra coisa”, diz Cidália Lima, enquanto vai passando toalhas junto às janelas para combater a humidade. Cidália garante já ter subido várias vezes a torre 1 sozinha, numa altura em que trabalhava nas limpezas e ia chamar uma amiga de madrugada para o emprego: “Subia e descia à vontade, nunca me fizeram nada. Não são as pessoas que cá estão que arranjam problemas.”

O principal alvo de críticas entre os moradores tem um nome: Rui Rio, o antigo presidente da Câmara do Porto, que em 2008 comunicou a intenção de demolir o Aleixo mas que viu o processo suspenso durante a campanha autárquica de 2009 devido à contestação dos outros candidatos. Foi ele quem avançou com a primeira demolição, da torre 5, em Dezembro de 2011; foi ele quem continuou para a torre 4, em Abril de 2013.

Mas nem só da decisão do social-democrata se queixam os moradores. O bairro, dizem, “começou a ser cada vez pior quando o Rio chegou”. “Veio para cá muita gente que não era do Aleixo e a droga não parou de entrar”, diz Berta, que nunca sonhou ter na saída do Aleixo, o seu bairro, o seu maior desejo. Os técnicos da câmara passam pelo bairro de longe a longe, queixa-se: “Fotografam, fazem perguntas e depois continua tudo na mesma. Eu queria que as doutoras que estão nos gabinetes olhassem para a pobreza e fizessem qualquer coisa. Como é que se pode olhar para esta pobreza e não fazer nada?”, pergunta.

Com a demolição de duas das cinco torres de 13 andares, o Aleixo passou a ter, em Abril de 2013, 192 habitações e 138 famílias em vez das 320 casas e 960 pessoas que por lá viviam em 2008. Actualmente, com as saídas faseadas dos moradores, não se sabe ao certo quantos serão.

Na campanha eleitoral de 2013, o agora presidente da câmara, o independente Rui Moreira,  garantia que o Aleixo seria uma das suas “principais prioridades” e que a demolição seria concluída, desde que fosse “exequível”, considerando que o problema ia muito alem da destruição de um “gueto irrecuperável” e da reconstrução imobiliária. As pessoas, assegurava na altura, seriam sempre a sua prioridade: “É preciso fazer um trabalho muito aturado junto das pessoas para perceber se ao retirarmo-las de lá não as desenraizamos”, assumia então.

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