Sida, tostões e saúde pública

Os portugueses esperam que o Estado combata o tráfico, não que desista de apoiar os utilizadores de drogas injectáveis com a rede de farmácias.

A saúde é um valor demasiado importante para tolerar erros, preconceitos ou objectivos de curto prazo. Quem está na Saúde, seja na governação, na regulação, ou na prestação de serviços e cuidados, tem a obrigação de abrir o dicionário pelo menos três vezes na palavra “responsabilidade” antes de tomar uma decisão.

Esta reflexão começa em 1984, quando António Variações morreu. Portugal entrou nos anos 90 com medo do contágio e da morte. Os casos diagnosticados de sida disparavam em flecha. As grandes canções de António tocavam muito na rádio, mas doía ouvir. A palavra sida abalava a sociedade portuguesa como um terramoto. O debate ainda estava carregado de preconceitos e previsões catastróficas. Uma parte da comunidade resistia a encarar a doença como um problema de todos.

Em 1993, a Comissão Nacional de Luta contra a Sida (CNLCS) e a ANF celebraram um protocolo pioneiro. Milhares de farmácias portuguesas começaram a trocar seringas e a distribuir preservativos à população toxicodependente.

A coragem de quem governava e dos farmacêuticos em atacar de frente o inimigo foi recompensada. Em 2002, uma avaliação independente encomendada pela CNLCS (Estimativa do impacto do programa Diz não a Uma Seringa em segunda mão no risco de infecção por VIH/sida na população portuguesa de utilizadores de droga injectada) evidenciou os ganhos económicos e em saúde do programa.

As farmácias portuguesas tinham contribuído para evitar mais de 7000 novas infecções por VIH durante os primeiros oito anos de existência do programa por cada 10.000 utilizadores de drogas injectáveis (UDI) existentes no início do programa. De acordo com as estimativas mais conservadoras, a tradução económica deste benefício poderá ter sido superior a 400 milhões de euros de poupança nos recursos financeiros alocados ao tratamento dos doentes infectados pelo VIH/sida.

“A eficácia inicial da distribuiçãode seringas poderia ter sido diferente, se não existisse previamente uma rede de distribuição nacional estruturada e disponível para aderir a este projecto, as farmácias portuguesas”, pode ler-se no relatório final do estudo.

E agora? Em Dezembro de 2012, após 20 anos de colaboração gratuita, discreta e empenhada, as farmácias foram retiradas deste combate. O Ministério da Saúde anunciou que queria negociar uma remuneração justa por um serviço tão importante e continuou a repetir a promessa ao longo do ano, mas nunca apresentou à ANF uma única proposta.

A opção política foi antes a de sobrecarregar os centros de saúde com a troca de seringas. O resultado, infelizmente, foi uma trapalhada. As seringas chegaram aos centros de saúde com meses de atraso e, nalguns casos, ainda não chegaram. As notícias sobre as múltiplas falhas sentidas no terreno fizeram eco no Parlamento. Deputados de várias bancadas pediram números ao Ministério da Saúde, mas durante meses só receberam palavras e intenções em papel timbrado.

Em Outubro de 2013, finalmente, o senhor secretário de Estado adjunto prestou pessoalmente contas, à unidade, na Comissão Parlamentar de Saúde. De Janeiro a Agosto de 2013, relatou, foram distribuídas 589.978 seringas aos utilizadores de drogas injectáveis que encontraram o caminho para os centros de saúde ou a quem ainda chegam as bravas ONG aderentes ao programa.

Faltou a essa sessão outro número, mais significativo. Em igual período de 2012 foram trocadas mais 372 mil seringas. De um ano para o outro, registou-se uma quebra de 31,5%, algo inédito em 20 anos de programa.

Não se trata de opinião, ou preconceito, mas de um resultado relevante para a saúde pública. O senhor secretário de Estado deixou mais uma vez a promessa de que iria contactar a ANF, mas acabou por confessar a motivação estritamente orçamental da nova política. “Não vamos trocar um serviço gratuito, que funciona bem, por algo que trará custos para o erário público”, disse o prof. Leal da Costa.

Ora, não é bem assim. Os centros de saúde não são “gratuitos”: têm custos, do pessoal à electricidade, todos pagos pelo Orçamento do Estado. A capacidade instalada nos centros de saúde também não é infinita. Os profissionais que lá trabalham sabem disso e os portugueses que esperam meses por uma consulta e que fazem filas à porta de madrugada também sabem bem disso.

Aliás, a conta é muito diferente. Quantas infecções foram contraídas entre os consumidores de drogas que poderiam ter sido evitadas? Quem se atreve a calcular o brutal sofrimento desnecessário dessas famílias? Quantos milhões vai o Estado gastar no tratamento desses doentes? Um tostão no Orçamento de 2013 vale mais do que um milhão no Orçamento de 2014? 

Os portugueses, em especial os que já experimentaram os dramas da droga e da sida nas suas famílias, esperam que o Estado combata o tráfico, não que desista de apoiar os utilizadores de drogas injectáveis com a rede de farmácias, que já mostrou ser eficaz e economicamente eficiente.

Pensamos que o certo, para 2014, é dizer: vamos lá, vamos resolver isto!

Presidente da Associação Nacional das Farmácias
 
 
 
 
 
 
 
 

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