Pornográfica é a crise

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Hugo Soares, Maria Trabulo, Jérémy Pajeanc e Carmo Osul são quatro dos cinco dinamizadores da Expedição, um projecto que quer inventar novos percursos no “território hostil” da criação artística destes tempos de crise

No Maus Hábitos, a nova colectiva do projecto Expedição faz o registo de um momento em que Apesar de tudo, ainda se fodia. E em que apesar de tudo também se faziam outras coisas que, dizem os agentes desta plataforma de apoio e divulgação de artistas, era obsceno não mostrar

Talvez seja disto que nos vamos lembrar quando nos lembrarmos daquele querido mês de Janeiro de 2014: chovia em cima de cada dia da semana como parecia nunca ter chovido antes, perdíamos heróis do tempo em que Portugal era do Minho a Timor (e ganhávamos outros, mas naquela altura não nos pareciam tão grandes), os desempregados (registados) já eram mais de 600 mil, 103 dos nossos deputados decidiam (logicamente) que o melhor a fazer para salvar o país era referendar a co-adopção, e no entanto, Apesar de tudo, ainda se fodia. Era pelo menos esse o título de uma exposição no Porto: uma exposição com um cartaz pornográfico, mas não tão pornográfico quanto a crise, nem tão pornográfico quanto as imagens dos cadáveres de imigrantes que nesse querido mês, como em muitos queridos meses anteriores, se viram a flutuar “no Mediterrâneo turístico”, ou quanto as notícias de gente a atirar-se da janela por não conseguir “pagar a hipoteca” (mas isso, claro, preferiríamos esquecer).

Apesar de tudo isto (e de tudo o resto: as sobretaxas, as visitas da Troika, o brain drain, os cortes indiscriminados, e, no caso muito particular do Porto, a máquinas calculadora a sair do bolso dos funcionários municipais sempre que se ouvia a palavra cultura), uma geração “habituada a sobreviver em espaços alternativos e em condições miseráveis” continuou, com os meios possíveis e a atitude possível, a fazer-se à vida, diz Miguel von Hafe Pérez. De regresso à cidade para comissariar a terceira exposição colectiva do projecto Expedição, inaugurada há uma semana no Maus Hábitos, o director do Centro Galego de Arte Contemporânea foi ter com alguns dos “seus” artistas — André Cepeda, Arlindo Silva, Carla Cruz, Carla Filipe, Cristina Mateus, Eduardo Matos, João Marçal, Mafalda Santos, Mauro Cerqueira, Miguel Leal, Pedro Magalhães, Sónia Neves e Vera Mota — e pediu-lhes que mostrassem uma parte do que andaram a fazer durante estes anos “de crise horrível” numa “cidade conduzida por um presidente de Câmara que ostensivamente marginalizava a cultura” ou, alternativamente, que fizessem algo de raiz para provar que sobreviveram para contar. Apesar de tudo, ainda se fodia responde, esclarece von Hafe, a “um programa mais afectivo do que teórico”, tanto porque é uma família de artistas que se reúne na mesma sala branca como porque o título é deliberadamente wishful thinking, tendo em conta tudo o que terá ficado por fazer. “Muito se perdeu, evidentemente, mas as coisas que apesar de tudo se fizeram são extraordinariamente importantes porque reiteram essa possibilidade individual de criação do mundo numa altura em que o mundo parece negar essa possibilidade”, argumenta, acrescentando que sim, esta é uma exposição de combate: contra “o niilismo” transformado em programa de Governo, contra “o vazio discursivo da política actual” como “terrorismo de Estado”.

O quadro “teórico” (aspas dele) que propôs aos 13 artistas de Apesar de tudo, ainda se fodia (e que corresponde ao manifesto impresso na folha de sala e que parcialmente aqui reproduzimos no final do primeiro parágrafo) podia ter-se tornado, admite o curador, “muito castrador” — só que o quadro teórico é real, é o aqui e agora, é o presente inescapável (e de facto bastante castrador) com que cada um deles se depara. Houve quem olhasse para ele e fugisse, como Mafalda Santos (On the best state of a republic), que trouxe para a exposição um mapa alternativo (também em wishful thinking) de Portugal, Mauro Cerqueira, que desenhou um rapaz com “uma opinião e uma seringa espetada no braço (Até logo), ou Carla Cruz, que importou de Espanha uma frase agora grafitada na parede do Maus Hábitos, “A nossa vingança é sermos felizes” (Citando Mujeres Creando). Mas também houve quem preferisse contá-lo como foi: André Cepeda prosseguindo o seu trabalho de aproximação vertiginosa à pobreza (Sem título, Lisboa), Cristina Mateus filmando o seu próprio espaço de trabalho, mas com um twist (As fabulosas tardes de C.), Eduardo Matos percorrendo as desertificadas estradas de província (A man in a yellow jacket rides a bike on the road), Pedro Magalhães mergulhando no mundo paralelo dos eventos de tuning (16v), Sónia Neves e Arlindo Silva fotografando outros artistas da exposição para memória futura (Cristina Mateus e Mauro na Casa Sincera, respectivamente).

O presente pode ser desolador, mas antes do presente houve o passado — e apesar de tudo “já se respira melhor”, sugere von Hafe, considerando não só o resultado prático das últimas autárquicas (saiu Rui Rio, entrou Rui Moreira e com ele, muitos anos de abstinência depois, um vereador para a Cultura, Paulo Cunha e Silva) mas também o diário gráfico da última década que Carla Filipe afixou numa das paredes do Maus Hábitos, um diário gráfico que entra a matar, remembering as semanas de frigorífico vazio em 2003: “Algumas pessoas dizem: ‘Esta fase do teu trabalho é a melhor, a fase mais punk!’. Foda-se, passar fome nunca mais, k se foda o punk”, escreve numa das páginas de Apesar de tudo nunca estive tão bem como agora. E depois noutra, sobre os tempos em que trabalhou como vigilante de exposições em Serralves: “Apenas uma farda! Apenas um dia de folga! Questão: como há tempo de mandar limpar a seco? Conclusão: não há! Consequência: cheiro a suor.”

Problemas

Apesar de tudo, ainda se fodia, que fica no Maus Hábitos até 1 de Fevereiro, é apenas uma das escalas da Expedição — uma viagem exploratória que o proprietário daquele espaço oficialmente inaugurado em 2001, o fotógrafo Daniel Pires, encomendou a cinco recém-formados pela Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto (FBAUP). Mais do que uma plataforma destinada ao apoio e à divulgação de jovens artistas — organizando e financiando exposições colectivas com curadores convidados, residências artísticas, laboratórios de criação, seminários teóricos e um programa paralelo de performances e concertos —, a Expedição quer ser “uma ferramenta para a alteração do presente”, um presente que os cinco expedicionários (Maria Trabulo, Jérémy Pajeanc, Hugo Soares, Horácio Frutuoso e Carmo Osul) consideram deficitário. “Há desvantagens em sermos ainda pequenos artistas, mas também há uma vantagem: estamos na melhor posição para diagnosticar os problemas que surgem no arranque da carreira artística”, diz ao Ípsilon Maria Trabulo. Jérémy Pajeanc completa: “Faltam, no Porto, espaços de trabalho, espaços de apresentação, apoios à produção, público e, sobretudo, pensamento crítico. Esta é uma viagem que pretende embarcar o meio artístico enquanto comunidade que faz mas também enquanto comunidade que pensa.”

Desde Setembro do ano passado, a Expedição tem procurado estar em todas essas frentes, desdobrando “o imaginário das viagens imaginadas por Júlio Verne” em actividades como o seminário Hangar, que decorre até amanhã no Maus Hábitos com uma série de debates sobre o rumo a seguir moderados por Miguel Leal, Fátima Séneca e Cristina Mateus (entrada gratuita), o regime de ocupação individual (sempre por períodos não superiores a 21 dias) do espaço expositivo A Ilha, no rés-do-chão da Garagem Passos Manuel (onde hoje, às 22h, Maria Trabulo inaugura Camouflage: “Hoje em dia, é raro um artista desta geração poder ter uma exposição individual, e aqui temos um espaço novo, virgem, para podermos trabalhar, contando com apoio técnico e financeiro”, diz), e um programa de performances entendido como estímulo à multiplicação de encontros intergeracionais entre artistas em início de carreira e artistas já estabelecidos. Ainda esta noite (23h), também no Maus Hábitos, Pedro Tudela cruza-se com João Gigante em 008. Antes disso, em Novembro, Manuel Santos Maia cruzou-se com Joaquim Pinto em É real e não uma imagem; brevemente, Paulo Mendes escolherá com quem quer dialogar.

Vontades

É esse mesmo espírito de diálogo que as residências artísticas da Expedição procuram estabelecer, fazendo coincidir num mesmo programa criadores de áreas não necessariamente comunicantes como o cinema (Catarina Oliveira, Joana Pena, Adriana Romero), a literatura (João Cardona), a música (João Sousa, do projecto Coelho Radioactivo) e as artes plásticas (Daniel Toledo). Aos residentes — que se comprometem apresentar os resultados de dois meses de trabalho (no caso dos actuais, será a 14 de Fevereiro) —, a Expedição oferece uma bolsa de produção “num valor bastante significativo”, espaço de trabalho, apoio técnico e material. Outra maneira de compensar o vazio de instituições dispostas a incubar novos artistas: “Iniciámos este projecto justamente porque era preciso começar a fazer coisas. Ainda há alguns espaços no Porto, mas infelizmente não são tantos como eram no pós-Capital Europeia da Cultura. As exposições de novos artistas que vão acontecendo são sempre fruto de vontades que se juntam, porque se quisermos falar de galerias e museus nada acontece. Ao contrário de Lisboa, o Porto não tem um mercado funcional e portanto o circuito depende muito mais de espaços independentes geridos por artistas”, defende Maria Trabulo.

A primeira colectiva organizada pela Expedição — que não estava sequer prevista no plano de actividades apoiado pela DGArtes — nasceu dessa urgência de fazer coisas antes que fosse demasiado tarde: Rumo a Oeste juntou “gente que estava a sair da faculdade e que precisava de ser vista”. A segunda, Co’Licença, com curadoria de Samuel Silva e Marta Bernardes, pôs o dedo noutra ferida: “Os dois propuseram fazer uma expedição ao seu próprio passado enquanto estudantes da FBAUP e resgatar colegas que não foram tão bem-sucedidos como eles imaginariam — à excepção dos Von Calhau.”

Pode parecer a mala ideal para uma viagem nostálgica, mas não foi, nunca é. “Queremos seguir em frente: este é o contexto, estas são as pessoas, queremos concentrar-nos no que temos e não no que podíamos ter tido”, sublinha Jérémy Pajeanc. A primeira etapa da Expedição termina a 21 de Março com o lançamento de uma publicação e mais uma festa em parceria com a editora Pad — novo embarque, só na segunda metade do ano. Talvez nessa altura já chova menos. 

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