O ano passado foi generoso para Nick Cave. O seu último álbum, Push The Sky Away foi amplamente elogiado, tendo figurado em inúmeras listas dos melhores de 2013. Mais do que isso: as suas performances em palco geraram unanimidade. Nos últimos anos (com os Bad Seeds, com os Grinderman), recuperou a aura de grandeperformer, a que não deverá ser alheio o renovado interesse em torno dos espectáculos ao vivo. Talvez por isso, no final do ano, Nick Cave resolveu lançar um disco ao vivo (Live From KCRW) que passou quase despercebido. Mas coisa rara: é um excelente álbum ao vivo. Os seus concertos são quase sempre um balanço entre a impetuosidade, quando se aproxima das barreiras e da assistência, provocando-a, irado, e a graciosidade, quando se senta ao piano, ou apenas quando faz uso do seu vozeirão arrebatado. O que é interessante em Live From KCRW é que tudo se passa de forma descontraída. Gravado em Abril último capta esse ambiente relaxado, numa interacção tranquila com o público, enquanto a banda se entrega aos temas de forma sedutora, numa listagem de canções que contempla o último álbum (Wide lovely eyes, Mermaids, Push the sky away e Higgs boson blues), e canções de sempre como The mercy seat, And no more shall we part, Jack the ripper ou People ain’t no good.
Se outra confirmação fosse necessária fica provado que o poder dos Bad Seeds não tem tanto a ver com a potência de som ou com o desempenho visceral, mas com o desenho das canções e a confiança dos intérpretes, que seguram as canções e se movem à vontade nelas, mesmo com pouca roupagem instrumental.
Apesar de excelente, Live From KCRM, será apenas uma nota de rodapé no percurso de Nick Cave e dos Bad Seeds. Hoje aliás já nem é muito comum serem lançados álbuns ao vivo como este. Quando muito surgem acompanhados por um DVD, o que propicia audição e visualização, criando a ilusão de que se trata de uma prática mais completa. Mas mesmo assim ouvir um álbum ao vivo na sala de estar parece resultar num enorme paradoxo.
Já todos tivemos experiências semelhantes: assistimos a um concerto que nos deixou rendidos e depois ouvimos a sua reprodução e falta qualquer coisa. Uma experiência áudio, visual e social é reduzida a algo que sai das colunas caseiras ou dos auscultadores do iPhone e a decepção é praticamente inevitável. Um concerto é um evento social. É a rendição do individual ao comunitário. A audição privada exclui. O iPod permite-nos ouvir música onde e quando queremos, mas o efeito é mais narcísico.
Numa sala de espectáculos o som surge de uma imensidão de posições e mesmo quando o performer está à nossa frente parece fazer ricochete nas paredes. É parte integrante da experiência. Pode não contribuir para que a prestação seja melhor do ponto de vista técnico, mas ajuda a que seja, pelo menos, mais envolvente. Da mesma forma o público que nos rodeia, com quem fomos ao concerto, a sala onde decorre, enfim, uma série de aspectos de carácter subjectivo, acabam por determinar a nossa experiência.
Genericamente os álbuns ao vivo foram sendo relegados para segundo plano com o decorrer dos anos, apesar das muitas e históricas excepções como Live At The Apollo de James Brown, Stop Making Sense dos Talking Heads, Kick Out The Jams dos MC5, Unplugged In New York dos Nirvana, Live Rust de Neil Young,Minimum Maximum dos Kraftwerk, Curtis/Live! de Curtis Mayfield ou Glitter And Doom Live de Tom Waits. Porque é que isso sucedeu? Porque aos olhos da maioria surgem como versões suplementares dos discos de estúdio. Ou porque se banalizaram as gravações de concertos. Ou porque são encarados como uma forma artificial dos grupos mostrarem que estão em actividade entre dois álbuns de estúdio. E especialmente porque não conseguem substituir-se ao estar naquele tempo e espaço, porque a música é também um laboratório sensorial e social.
Qualidade e quantidade
Antes da primeira gravação, em 1878, a música era prática e acontecimento social, ligada a funções específicas: era comunitária e utilitária. De todas as artes, é aquela que é menos palpável e mais uma práxis, conectada com o local onde a ouvimos ou com quem a ouvimos. Nesse tempo, em ambientes domésticos, no bairro ou na rua podia-se ouvi-la efemeramente – só a memória registava o que se havia ouvido e sentido.
No século XX essa relação foi sendo transformada, em parte pela tecnologia. Tal como a fotografia transformou a forma como vemos, também a tecnologia de gravação mudou a forma como ouvimos. Quando começou a ser registada passou a ser também produto – qualquer coisa que podia ser comprada, vendida e ouvida inúmeras vezes em todos os contextos. Deixou de ser necessário assistir a concertos ou praticá-la para ser ouvida.
Os profissionais começaram a fazer isso pelos amadores e à sua volta nasceu um modelo industrial de como criar, distribuir e vendê-la. A função e o seu uso social mudaram – deixou de ser qualquer coisa em que se participava, para ser também um objecto físico preparado para ser consumido por toda a gente. A maior parte de nós cresceu num tempo onde a música gravada era um dado adquirido. Crescemos familiarizados com concertos, mas essencialmente a ouvir música de forma privada, em casa.
Na última década, com a entrada no domínio digital, esse modelo industrial foi colocado em causa pela desmaterialização. As condições de feitura, existência, partilha e distribuição alteraram-se. Nos últimos anos assistiu-se a um fenómeno de massificação e disseminação, com alguns impactos negativos e outros positivos.
A democratização da fruição musical e a possibilidade de cada um produzir música é uma mais-valia. Por outro lado a música banalizou-se, tornou-se omnipresente, e essa imersão tanto pode estimular a experiência como funcionar como ruído contínuo. A qualidade da experiência parece ter sido substituída pela quantidade. Vivemos rodeados de sons gravados. Hoje, mesmo quando não queremos ouvir música, somos obrigados a fazê-lo.
Antes dos estúdios de gravação, a música era uma experiência rara. Agora existe uma sensação de entorpecimento cultural provocado pelo acumular de informação. Em parte, por isso, existe uma apetência pelo regresso ao ritual, às experiências únicas, aos concertos. Embora, paradoxalmente, na maior parte das vezes, a audiência deseje ouvir o que já conhece dos discos de estúdio.
Uma inclinação que não é nova. Nos anos 1920, com a afirmação da rádio, o público começou a experimentar a música de outra forma. Gostava tanto do que ouvia que começou a exigir que nos concertos os artistas soassem como na rádio. Resultado? A interpretação ao vivo de uma canção passou a ser assumida como a recriação da versão gravada. E eis mais um contradição: aquilo que era originalmente a simulação de uma performance (a gravação) suplantou a performance. Hoje são asperformances que são consideradas recriações das gravações. As audiências gostam de ouvir canções que já conhecem, num novo contexto. Querem ouvir qualquer coisa de familiar, a partir de um ângulo desconhecidos. Para alguém como Nick Cave, que lança com regularidade música nova, isso pode ser um problema.
Tal como um actor, um escritor ou um artista visual se deve entediar se todos os dias fizer o mesmo, também um músico se satura se tocar sempre as mesmas canções. Daí que um concerto, na maior parte das vezes, seja uma mistura de habitual, com variações novas. O segredo dos grandes performers, como Nick Cave ou Tom Waits ou James Brown, é o de captarem gestos, movimentos e sons de forma espontânea e sempre que o repetem o impacto emocional é semelhante ao da primeira vez.
E aqui estamos em 2014: um século depois de constantes inovações e da digitalização da música parece que voltamos a uma espécie de ponto de partida renovado, onde a função social da música é enfatizado. Cada vez mais queremos deixar-nos submergir nela em comunidade, em concerto, tendo por foco de atenção de performers como Nick Cave. E isso, por melhores que sejam os discos, não é possível de experienciar na sala de estar. Só estando lá.
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