Crítica de música: um auspicioso início do ano Gluck

Uma interpretação sedutora e equilibrada que fez brilhar a maravilhosa música do Orfeu de Gluck na versão de Berlioz.

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O papel de Orfeu, em torno do qual tudo gira, coube à reputada meio-soprano sueca Ann Hallenberg DR

Orphée, de Gluck (versão de Berlioz). Ann Hallenberg, Carolyn Sampson, Eduarda Melo (cantoras solistas), Coro e Orquestra Gulbenkian, Paul McCreesh (direcção musical), Marie Mignot (direcção cénica). Lisboa, Centro Cultural de Belém, 23 de Janeiro, às 21h. Sala a três quartos Quatro estrelas

Em 2014 comemora-se o tricentenário do nascimento de três importantes compositores setecentistas: Christoph Willibald Gluck (1714-1787), Niccolò Jommelli (1714-1774) e Pedro António Avondano (1714-1782). A programação da temporada Gulbenkian prestou recentemente homenagem ao primeiro (o mais conhecido do grande público e uma das figuras cruciais do movimento de reforma da ópera no século XVIII) através da sua obra mais famosa: Orfeu e Eurídice.

O maestro titular da Orquestra Gulbenkian, Paul McCreesh, deixou de lado a versão italiana original, estreada em Viena em 1762 e baseada no libreto Calzabigi, e a versão francesa de 1774 com libreto adaptado por Pierre-Louis Moline, optando antes pela readaptação de Hector Berlioz realizada em 1859. Intitulada simplesmente Orphée, esta combina as duas anteriores, inclui mudanças na estrutura e a atribuição papel titular a um contralto, na época a famosa meio-soprano Pauline Viardot (no original italiano Orfeu era cantado por um castrato e na versão parisiense de 1774 por um haute-contre ou tenor agudo).

Tendo em conta as características da Orquestra Gulbenkian no que diz respeito às dimensões e ao perfil interpretativo faz sentido a escolha desta versão de meados do século XIX, já que a de 1762 seria mais adequada a um orquestra com instrumentos de época. Por outro lado, o trabalho de Berlioz, que era um grande apaixonado por Gluck, é de um grande refinamento. Como tem sido habitual nas óperas integradas na programação Gulbenkian, a apresentação foi semi-encenada, incluindo movimentações das personagens e do coro, que logo no início traz flores para colocar no túmulo de Eurídice e que, no caso das senhoras, ostenta véus pretos semitransparentes que são colocados sempre que a acção o implica. A direcção cénica de Marie Mignot é simples e de bom gosto e não descura o poder das expressões faciais e do olhar.

O papel de Orfeu, em torno do qual tudo gira, coube à reputada meio-soprano sueca Ann Hallenberg, detentora de um belo timbre e de admiráveis qualidades interpretativas. Tirando a ária di bravura do final do 1.º acto, que carecia de mais agilidade e pôs em evidência um registo agudo algo estridente, a sua intervenção foi muito consistente e fez justiça ao desenvolvimento dramático e psicológico da personagem. A soprano inglesa Carolyn Sampson, bem conhecida dos melómanos da música barroca, mostrou a sua habitual flexibilidade vocal e elegância na linha do canto e a portuguesa Eduarda Melo (no papel de Amor) distinguiu-se pela voz cristalina, apuro técnico e adequada expressividade.

Quanto à orquestra, dirigida por Paul McCreesh, revelou uma boa sonoridade, coesão e um trabalho sólido ao nível da transparência das texturas e do fluxo do discurso, contando com algumas intervenções solísticas dignas de nota, em especial os solos de oboé de Pedro Ribeiro, com momentos belíssimos no diálogo com a voz em Quel nouveau ciel pare ces lieux! Cabe realçar ainda o excelente desempenho do Coro Gulbenkian, que funciona como uma personagem colectiva e tem uma intervenção dramática crucial e não apenas de comentador. A sedutora música que Gluck destina ao coro foi decerto uma grande inspiração para uma interpretação de grande requinte e naturalidade, bem como para a sintonia do conjunto.
 
 
 
 

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