Retire-se o amor

O que está em causa, do princípio ao fim, é mesmo uma questão de amor e de afectividade.

Acreditem: eu faço um esforço genuíno para compreender os argumentos das pessoas que pensam de forma diferente da minha. Por isso, eu consigo perceber os dois lados na questão do aborto. Eu consigo perceber os dois lados na questão da eutanásia. Eu consigo perceber os dois lados na questão da pena de morte. Eu consigo perceber os dois lados na questão do casamento homossexual. Eu consigo perceber os dois lados na questão da adopção por casais gay. Mas eu não consigo perceber os dois lados na questão da co-adopção.

Ou melhor, consigo, se as pessoas que se opõem à co-adopção recusarem dois princípios civilizacionais básicos: 1) os interesses de uma criança têm prevalência sobre os interesses de um adulto; 2) uma criança tem direito a manter os laços afectivos com as pessoas que ela considera serem as suas figuras maternas ou paternas (e que podem ser, ou não, os pais e mães biológicos). Aceitando a premissa 1 e a premissa 2, e aceitando que uma criança não deve ser retirada de um lar se estiver a ser criada por homossexuais (coisa que ainda não vi ser defendida por nenhum opositor da co-adopção), eu diria que estamos perante o óbvio ululante: essa criança tem o direito de estar legalmente vinculada ao casal que a está a criar.

Ainda assim, dada a minha fé na espécie humana e na necessidade de compreender aqueles que não pensam como eu, nos últimos dois dias passei horas e horas a ler e a debater em blogues e nas redes sociais sobre a co-adopção, à espera que alguma alma fosse capaz de me oferecer um só argumento compreensível para a sua rejeição, que não passasse pela alergia ao lóbi LGBT ou pela invocação de coisas como o “direito à identidade”, que ainda que consideremos altamente relevante tem o problema de já estar neste momento posto em causa nas famílias homossexuais que estão a criar as crianças. As mesmas crianças – recorde-se – que ninguém se atreve a defender que sejam retiradas às famílias homossexuais.

E portanto, por mais tolerante, e inclusivo, e relativista, e democrata que eu tente ser, confesso a minha extrema dificuldade em discutir com pessoas que tratam a lógica como se fosse uma batata. As voltas à coluna vertebral que são necessárias para que os opositores da co-adopção não admitam à luz do dia o que realmente os move – ou seja, que é preferível o lóbi LGBT perder esta guerra do que algumas centenas de crianças verem a sua situação resolvida – vai ao ponto de gente como Helena Matos (no Diário Económico) ou João Miranda (no blogue Blasfémias) defenderem que o amor e a afectividade devem ser retirados da equação. “O que está em causa não é uma questão de amor ou de competência para tratar das crianças mas sim de modelo familiar e de direito à identidade”, escreve Helena Matos.

Assim à partida, eu diria que aquilo que está em causa, do princípio ao fim, é mesmo uma questão de amor e de afectividade. Não de amor dos pais pelos filhos, nem dos pais entre eles – isso são questões que se colocam na adopção, e que nesse âmbito podem e devem ser discutidas –, mas daquele tipo de amor que mais sentido faz proteger legalmente: o que une os filhos aos seus pais. Agora, a bem de a lógica não ser uma batata, numa coisa temos de dar inteira razão a Helena Matos e a João Miranda: se da questão da co-adopção extirparmos todo o amor e toda a afectividade, eu também não vejo por que razão há-de ela ser permitida. Há que dar o braço a torcer. Retire-se o amor – e tudo ficará bem.
 
 
 
 

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