As eleições europeias e o escrutínio da esquerda

Em toda a Europa a esquerda estará sujeita a um escrutínio muito intenso. É bom que tenhamos consciência de que em Portugal também isso vai acontecer.

Em 1871 Benjamin Disraeli, pouco antes de se alcandorar ao lugar de Primeiro-ministro britânico, instado a pronunciar-se sobre a guerra franco-prussiana pronunciou as seguintes palavras: “A guerra representa a Revolução Alemã, um acontecimento político mais importante do que a Revolução Francesa do século passado (…) não há tradição diplomática que não tenha sido radicalmente mudada. Existe um mundo novo. O equilíbrio de poder foi totalmente destruído.”

Para Henri Kissinger, que analisou a questão na qualidade de grande historiador das relações internacionais, ninguém terá compreendido tão bem o alcance da unificação alemã ocorrida no século XIX como este literato judeu investido nas funções de líder dos conservadores britânicos. Sob a liderança de Bismarck a Prússia, opondo-se e superando as ambições do vetusto Império austríaco, havia promovido com sucesso a reunificação germânica alterando, dessa forma, todo o cenário político europeu. A guerra franco-prussiana terminara com uma retumbante vitória prussiana, com a consequente anexação da Alsácia-Lorena, suprema humilhação do orgulho gaulês. Conhecendo como conhecemos a evolução ulterior da História europeia no decorrer do último século e meio, estamos em condições para compreender o verdadeiro alcance do problema alemão que então se encontrava em estado germinal. Essa questão, que passou por múltiplas metamorfoses, colocou-se sempre com especial incidência em França. De algum modo, esta questão é mesmo anterior a esta data e, pelo menos, remonta ao Império de Carlos V. Um poder demasiado forte e consolidado na Europa Central produz o efeito de gerar uma grande angústia em França.

Em boa verdade, o problema alemão deu origem historicamente a acontecimentos de orientação diametralmente oposta – tanto esteve na base da vontade hitleriana de instauração de uma “ Nova Ordem Europeia” como conduziu, no pós-guerra, à criação das instituições comunitárias, a C.E.C.A. num primeiro momento e, posteriormente, a C.E.E. O chamado eixo franco-alemão tem por isso um longo historial repleto de vicissitudes diversas. Após a Segunda Guerra Mundial o talento político de dois conservadores excepcionais, Adenauer e De Gaulle, proporcionou o surgimento de uma solução europeia alicerçada no respeito comum pelas regras da democracia parlamentar, da economia de mercado e de um Estado Social activo. Estávamos ainda muito longe da globalização. A Alemanha encontrava-se de novo dividida, desta vez por razões atinentes sobretudo à ideologia, e o mundo vivia em plena Guerra Fria que opunha duas potências extra europeias, os Estados Unidos e a U.R.S.S. Sem procurar desvalorizar quanto de idealismo poderá ter existido na génese do projecto europeu, a verdade é que ele resultou, em grande parte, de um encontro de vontades e de interesses entre a França e a Alemanha. Os gauleses precisavam dos germânicos por razões económicas e a Alemanha carecia do pleno reconhecimento francês por motivos de natureza política.

Entretanto muitas coisas aconteceram. A Guerra Fria terminou, o mundo comunista do Leste europeu ruiu, a Alemanha voltou a reunificar-se e as regras da economia internacional sofreram uma profunda modificação. Em 2008 o mundo viu-se confrontado, como é sabido, com uma grave crise financeira provinda dos Estados Unidos mas que rapidamente se propagou à Europa. Na sequência dessa crise os chamados países periféricos, situados no Sul do velho continente, depararam-se com o problema da designada crise das dívidas soberanas. A Europa fragmentou-se entre um Norte competitivo e com acesso a um crédito fácil e um Sul sujeito a uma feroz concorrência externa e confrontado com uma radical deterioração das condições da concessão de crédito. Sabemos bem qual foi o percurso entretanto percorrido: acentuou-se esta clivagem, os países do Sul foram submetidos a uma draconiana cura de austeridade, as suas economias deterioraram-se e os seus equilíbrios sociais foram profundamente afectados. No meio disto tudo ficou um país, dividido entre o norte e o sul, a França.

Há um ano e meio a vitória de François Hollande gerou uma grande expectativa em vários países europeus. Oriundo do espaço político e ideológico do centro-esquerda, o novo Presidente francês estaria aparentemente em condições de garantir um novo equilíbrio na relação franco-germânica. Onde Sarkozy tinha acabado por soçobrar, Hollande parecia destinado a triunfar. Durante o último ano e meio, apesar de tudo, a Europa, gradual, modesta e lentamente, foi operando algumas mudanças. Mario Draghi não é uma completa invenção de si próprio, é também o reflexo de um novo enquadramento político e para tal contribuíram fortemente o conservador e respeitado Monti e o socialista Hollande. O euro salvou-se, os países mais afectados pela crise beneficiaram alguma coisa das decisões tomadas pelo B.C.E. Isso não obstou a que permanecesse a total fragmentação da zona monetária e se mantivesse a imposição de uma atroz política de austeridade aos países mais endividados. Os resultados dessa austeridade são conhecidos: empobrecimento colectivo, agravamento das desigualdades, deterioração das economias.

Foi neste contexto que François Hollande, no cume da sua impopularidade, decidiu pronunciar-se. O Presidente francês estava confrontado com um dilema: ou liderava um movimento conducente à afirmação de uma resposta europeia à crise na base da cooperação entre os diversos Estados, ou se empenhava em contrariar a hegemonia alemã pela via do reforço da competitividade da economia francesa. Perante os sinais óbvios da inexistência dessa vontade de cooperação, Hollande optou pela segunda via. Fê-lo, aliás, de uma forma clara. Anunciou um corte significativo, da ordem dos trinta mil milhões de euros, nas contribuições das empresas para a Segurança Social, manifestou a vontade de combater os desperdícios e os abusos do Estado Social e comprometeu-se a não aumentar a já muito elevada carga fiscal incidente sobre os contribuintes franceses. Não se ficando por aqui, foi ainda mais longe e enunciou as vantagens de uma economia assente na oferta, revelando uma estranha adesão à conhecida lei de Say e à doutrina liberal. Talvez por isso, Paul Krugman fustigou-o no seu artigo semanal acusando-o de ter cedido às orientações da ortodoxia dominante.

A questão em apreço não é susceptível de resolução simples. Hollande tem razão quando se preocupa com o problema da competitividade das empresas francesas, sobretudo se comparadas com as suas congéneres alemãs. Consciente disso mesmo, e do excessivo peso do Estado no seu país, optou por um caminho conducente à valorização da dimensão produtiva, nomeadamente na sua vertente industrial. Por outro lado, ao agir dessa forma, ainda que reclamando uma orientação social-democrata interna, fragilizou de algum modo o centro-esquerda europeu.

Na realidade, Hollande não aderiu ao liberalismo puro e duro, já que apelou a um papel determinante do Estado na promoção de um novo compromisso social no seu país. O que de alguma forma desvalorizou foi uma dimensão europeia na resposta à presente crise. Isso vai tornar as próximas eleições para o Parlamento Europeu especialmente exigentes. O que vai estar em causa vai ser a capacidade de elaboração de um discurso social-democrata sério, ambicioso e exequível no plano europeu. Ora isso não se alcança com um discurso meramente assente na repetição de slogans, de frases feitas e de proclamações tão pretensiosas quanto vazias. Pelo contrário, esse objectivo só será alcançado pela via da imaginação política, da compreensão da realidade e do apelo à capacidade de inovação conceptual. Em toda a Europa a esquerda estará sujeita a um escrutínio muito intenso. É bom que tenhamos consciência de que em Portugal também isso vai acontecer.
 

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