A política científica e a tesoura de podar

O início do novo ano tem sido dominado pelo debate político sobre os cortes no número de bolsas aprovadas em concurso nacional: menos 40% nas bolsas de doutoramento e 65% nas de pós-doutoramento.

Pode julgar-se, à primeira vista, que se trata de mais uma consequência inevitável do programa de ajustamento orçamental e, portanto, de cortes na despesa pública exigidos pela troika e impostos pela crise. Mas não, pois a ciência viu o seu orçamento reduzido em apenas 4%. Como grande parte do financiamento do sector continua a fazer-se com fundos comunitários, a consequente menor dependência do Orçamento de Estado tem permitido alguma preservação das condições de financiamento da ciência. Portanto, os recursos financeiros existem e estão orçamentados.

Que se passa então? O que justifica cortes tão drásticos no número de bolsas?

Passa-se que o Governo está a fazer escolhas que passam por diminuir o financiamento das bolsas e canalizar os recursos financeiros públicos assim libertos para outros domínios, com outros objetivos. Esta redistribuição levanta pelo menos três problemas.

(1) Embora o Governo tenha toda a legitimidade para fazer opções, em democracia exige-se que essas opções sejam transparentes e do conhecimento público. Alguém sabe quais são as opções do Governo em matéria de financiamento do sistema científico que explicam os cortes nas bolsas? Alguém sabe que programas vão beneficiar da quebra de financiamento nas bolsas? O desconhecimento das opções do Governo gera a incerteza, em especial nos centros de investigação. Incerteza no que respeita aos objetivos, aos critérios, às regras e aos prazos de avaliação e de financiamento, tanto de bolsas, como de projetos e instituições.

(2) Com níveis de aprovação da ordem dos 10%, e mesmo inferiores no caso das ciências sociais, não estamos perante uma maior exigência e seletividade, entrámos no domínio da extinção dos recursos científicos. Entre os mais jovens, centenas de muito bons e excelentes alunos deixarão de ter oportunidade de fazer o seu doutoramento, sendo condenados à extinção como investigadores a menos que as famílias tenham rendimentos para financiar a sua formação.

(3) As bolsas de doutoramento e pós-doutoramento têm sido o principal mecanismo de promoção do emprego científico, assegurando a renovação de gerações, a mobilidade dos investigadores e a estabilidade das atividades de investigação. Reduzir tão drasticamente o número de bolsas significa reduzir drasticamente as condições para a renovação de gerações, para a mobilidade dos investigadores e de estabilidade das instituições. Ocorre perguntar se o Governo criou um novo instrumento de política para garantir tais condições. Não sabemos.

Em contrapartida, ouvimos falar num novo paradigma e numa “tesoura de podar”. Ficámos a saber que o sistema científico é uma árvore e que os investigadores, sobretudo os mais jovens, são ramos excedentários, secos e improdutivos, a precisar de ser cortados e deitados ao lixo.

Penso que é nesta metáfora que o Governo revela todo o seu programa. Este não é, infelizmente, orientado para o fomento e desenvolvimento da ciência. O corte nas bolsas de investigação é mais uma consequência do programa ideológico radical de destruição de tudo o que é público, simplesmente porque é público, e de concentração do financiamento num reduzido número de áreas e instituições. Para essas são transferidos os recursos que se negam à generalidade da comunidade científica. Com o argumento de que são os melhores. Serão?

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