O superior interesse da baixa política

O que pensam fazer a estas crianças? Separar os seus pais/mães e recasá-los com cônjuges do sexo oposto?

No passado dia 17 de Maio, foi aprovada, na generalidade, uma proposta de lei que consigna o direito de um cidadão homossexual co-adoptar o filho ou a filha do seu cônjuge (ou unido de facto) – direito esse já consignado na lei para proteger crianças de casais heterossexuais. No dia 17 de Janeiro, um golpe de baixa política, que ninguém previu, adiou o reconhecimento desse direito àquelas crianças, e às suas famílias, sabe-se lá para quando.

Escrevo como mãe de duas jovens com orientações afectivo-sexuais diferentes. É expectável que a minha filha mais nova venha a ter um projecto de maternidade com outra mulher. Essa é uma possibilidade que nos faz sentir bem e terá todo o apoio da família.

A minha experiência de mãe tem sido útil e necessária para a minha incorporação do verdadeiro sentido da ausência dos direitos das pessoas LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, transexuais). Foi uma aprendizagem que me esclareceu, ensinou. Deu-me a dimensão do Outro, irreversivelmente e para sempre. Incorporei-a como minha. Apercebi-me, como se aperceberam muitas outras mães e pais, da absurdidade da homofobia, dos seus lados mais sórdidos, também.

Esta absurdidade está patente na forma de argumentar de quem se opõe à co-adopção em casais do mesmo sexo. Uma argumentação que assenta num dos aspectos mais cruéis do preconceito homofóbico – a imposição da invisibilidade.

Cada vez que se discute esta proposta de projecto-lei, é necessário dizer que “sim, as crianças existem, estas decisões têm implicações em cidadãos reais, não em abstracções”. Não é extraordinário?

Não, de facto, não só não é extraordinário como é incontornável. Esta explicação, estafada e estafante, impõe-se em resposta aos que, postos perante a descrição da situação de desprotecção e de discriminação destas famílias, recorrentemente argumentam que “o superior interesse da criança é ter um pai e uma mãe”.

Então, o que pensam fazer a estas crianças? Separar os seus pais/mães e recasá-los com cônjuges do sexo oposto? Mantê-las invisíveis no seu raciocínio argumentativo, seguindo o bem conhecido preceito homofóbico “não perguntes, não digas”?

A aprovação, na passada sexta-feira, na Assembleia da República, de um referendo que travou a votação final da proposta de lei da co-adopção em casais do mesmo sexo, é uma vergonha sem nome em democracia que só foi possível através do expediente da disciplina de voto que violou a consciência de vários deputados e deputadas. É uma prova, para toda a sociedade, da cegueira ideológica, da descolagem total da realidade de quem decide neste país. É uma prova do desrespeito pelos processos parlamentares que se seguiram à primeira votação, do desrespeito por todos os especialistas e organizações que generosamente disponibilizaram o seu tempo e o seu esforço, pensando que o processo legislativo seguiria o seu curso normal, fornecendo informação científica séria, necessária.

A ofensa às nossas famílias não tem nome. As crianças, e os seus pais ou mães, continuam com o peso do não-reconhecimento legal de um dos cônjuges, fundamental em situações médicas, escolares e em tantas outras; com o peso, também, do não-reconhecimento legal de uma das famílias alargadas, onde se incluem tios, primos, avós.

Estas famílias continuam sem o reconhecimento legal das suas vidas. Enquanto os processos legislativos vêm e vão, vão vivendo vidas únicas que não esperam, não se adiam.

Por morte da mãe ou pai biológico, estas crianças correm o risco de serem retiradas ao seu outro pai ou mãe e a toda aquela família.

Por morte da mãe ou pai biológico, o “Estado a que isto chegou” decidirá.

Presidente da Amplos – Associação de Mães e Pais pela Liberdade de Orientação Sexual e Identidade de Género
 

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