Investigação ao acidente do Meco muda de mãos e passa a estar em segredo de justiça

Ex-responsável pelo conselho de praxes da Lusófona diz que era habitual organizarem fins-de-semana, pelo menos uma vez por ano.

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Foram vários os colegas das vítimas na Lusófona que estiveram na homenagem do último domingo Oxana Ianin

Andavam sempre trajados, de negro. Viram-nos a dançar na rua, com uma colher de pau. Viram um dos rapazes com um "grande ramo de flores" na mão. No minimercado, dois deles compraram algumas coisas, no sábado, pela hora de almoço. Em Aiana de Cima, concelho de Sesimbra, não vive muita gente. Por isso, é fácil encontrar quem se tenha cruzado com os jovens que ali alugaram uma casa para passar um fim-de-semana, em Dezembro. O que descrevem é um ambiente de praxe académica. Seis acabariam por morrer na madrugada de dia 15, levados por uma onda na Praia do Moinho de Baixo. O caso passou a estar em segredo de justiça.

João Gouveia, o único sobrevivente do grupo dos sete que foram passar o fim-de-semana a Aiana de Cima, era para ter sido ouvido nesta terça-feira, pela Polícia Marítima. Mas a audição foi adiada e será já o procurador-coordenador do Tribunal do Círculo de Almada que o ouvirá, segundo a SIC. A Procuradoria-Geral da República (PGR) limita-se a confirmar que o inquérito já não está com o Ministério Público de Sesimbra e que foi avocado ao procurador de Almada.

Numa nota, a PGR informa também que "serão realizadas todas as diligências adequadas ao esclarecimento das circunstâncias em que ocorreram as mortes, para tanto se recorrendo aos órgãos de polícia criminal" que estejam "mais bem apetrechados". A investigação, acrescenta, "não é orientada para pessoas determinadas", porque não há, até ver, indícios de prática de crime.

Fábio Jerónimo, um ex-dux do Conselho Oficial da Praxe Académica (COPA) da Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, em Lisboa, diz que aquele era para ser um fim-de-semana igual a outros que costumavam organizar, "pelo menos um por ano" — o dux é o chefe máximo da praxe, segundo a tradição académica. "Podiam participar todos os trajados", diz.

Contudo, faz questão de sublinhar que já nada tem que ver com o COPA (e que já não estuda na universidade), ao contrário do que foi indicado pela associação académica da Lusófona, que, na segunda-feira, em resposta ao PÚBLICO, tinha apontado o nome dele como o actual responsável. "O COPA agora não tem responsável", continua Fábio Jerónimo.

Explica também que não teve nada que ver com a organização deste fim-de-semana. Afirma, ainda assim, que, desta vez, só sete alunos participaram no encontro. "Houve três pessoas que não puderam ir." E diz que não sabe qual era o objectivo do mesmo.

De resto, lamenta ter perdido amigos. Diz que só quem esteve na praia naquele dia poderá dizer o que aconteceu.

Nesse fim-de-semana, o dux ainda era João Gouveia. O estudante tem-se remetido ao silêncio, está a receber acompanhamento psicológico, mas os pais das vítimas já fizeram um ultimato, que dirigiram ao COPA. Querem que alguém lhes diga como é que os filhos morreram. Dão um prazo: quinta-feira. Caso contrário, ameaçam com outras medidas, desde jurídicas à divulgação de mais informações para a comunicação social. Uma das grandes dúvidas é se os jovens estavam ou não no mar na madrugada de dia 15 e se isso constaria de uma praxe, diz Fátima Negrão, mãe de uma das vítimas.

Colher de pau e flores
Etelvina Fonseca é a pessoa que costuma fazer a limpeza de uma vivenda na Rua do Sol, em Aiana, que pertence a um casal que vive em Lisboa. A casa costuma ser alugada para férias e fins-de-semana. Às vezes, Etelvina recebe os hóspedes. Desta vez não foi assim.

Na sexta-feira dia 13 de Dezembro, já sabia que a casa ia ser alugada quando se cruzou com um rapaz e uma rapariga que lhe pediram informações sobre a localização da vivenda. O rapaz estava, ao mesmo tempo, a falar ao telefone com alguém — que Etelvina acredita tratar-se de um dos donos da casa. "Tinham combinado encontrar-se aqui [em Aiana] para lhes darem a chave. Mas acho que os estudantes se atrasaram e eles [os donos] foram a Alfarim jantar. Penso que os estudantes foram ter com eles para receberem a chave", conta.

Por volta das nove da manhã de sábado dia 14, Manuel Fernandes, que mora perto da vivenda, viu dois dos rapazes do grupo na rua. Estavam trajados. Cumprimentaram-se. Perto da hora de almoço, Adelino Miguel Pereira, dono do minimercado que fica à beira da rua principal de Aiana de Cima, atendeu um rapaz e uma rapariga, também trajados. Não tem a certeza do que levaram — "Creio que massa e mais umas coisas" — mas garante que não levaram bebidas alcoólicas. "É a pergunta que os jornalistas me têm feito."

Cerca das seis da tarde, Adelino Pereira viu um grupo maior, não sabe ao certo de quantos, também todos com o traje académico envergado. "Estava um grupo perto de outra casa e um dos rapazes tinha um grande ramo de flores, muito bonito."

Voltaria a cruzar-se com eles pelas nove ou nove e meia da noite. Passaram na estrada que liga Aiana à localidade de Caixas, alguns quilómetros à frente. Iam a pé.

No Café Irinez, já em Alfarim, também viram passar o grupo dos trajados nessa noite. Que caminhos seguiram depois, para chegar à praia, ninguém sabe. Fátima Negrão diz que a proprietária do bar próximo da Praia do Moinho contou que fechou o estabelecimento perto da meia-noite, que olhou para o areal em frente e não estava ninguém. Era uma noite clara, de lua cheia.

À uma da manhã, João Gouveia deu o alerta para o acidente.

Etelvina Fonseca diz que só voltou à casa da Rua do Sol a 9 de Janeiro. Nunca a polícia a procurou, mas, de qualquer modo, achava que devia deixar passar tempo até mexer nas coisas depois de uma tragédia daquelas. Encontrou o frigorífico completamente vazio — "nem uma garrafa de água" —, e "as camas com as orelhas puxadas".

Alguém (não sabe dizer quem) ligou-lhe a pedir que procurasse uma colher de pau que teria ficado esquecida pelo grupo. Diz que correu tudo, abriu todas as gavetas, e nada. A mesma pessoa pediu-lhe para procurar atrás das portas. E lá estava colher atrás de uma. Nunca poderia caber numa gaveta. "Era uma colher do meu tamanho, com uma boneca pintada e dizia ‘praxe’."

Em universidades antigas, como a de Coimbra, a colher de pau é um dos três símbolos, para além da moca e da tesoura, da praxe académica.
 

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