Este não é um artigo sobre coadoção

Há uma tentativa de desinformação científica que tem, por vezes, permeado a discussão sobre esta temática

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Krishnendu Halder/Reuters

Enquanto cidadão, psicólogo e investigador, a coadoção em casais do mesmo sexo não é, para mim, um assunto polémico. Prefiro antes refletir sobre uma outra questão, essa sim preocupante: a tentativa de desinformação científica que tem, por vezes, permeado a discussão sobre esta temática. Um primeiro exemplo prende-se com o lançar para o debate, em jeito de epifania, a constatação de que a ciência não é unânime relativamente à homoparentalidade.

Ora, o consenso científico não depende de uma unanimidade cega, mas sim de tendências gerais evidenciadas por um conjunto de estudos. É este o caso do corpo de investigação a partir do qual se pode concluir que são mais as semelhanças do que as diferenças entre a heteroparentalidade e a homoparentalidade. As tomadas de posição, por exemplo, da Associação Americana de Psicologia ou da Ordem dos Psicólogos Portugueses são, aliás, bastante cuidadosas em relação a este aspeto.

Participar neste debate divulgando seletivamente resultados de um estudo sociológico que sugere um impacto negativo da homoparentalidade e apresentando-o como a única verdade sobre esta matéria é grave. Principalmente, quando o próprio autor deste estudos já reconheceu publicamente que o mesmo nada diz sobre os efeitos da orientação homossexual das mães e pais no bem-estar dos seus filhos. Este tipo de argumentação não põe obviamente em causa as dezenas de estudos, sufragados pela comunidade científica, que estão na base do consenso alargado acerca da ausência de impacto negativo da orientação sexual das mães e dos pais no desenvolvimento dos seus filhos.

Um segundo exemplo prende-se com a acusação de que as investigações com famílias homoparentais padecem de limitações e que, nesta medida, os seus resultados não são credíveis. A título de exemplo, um dos pretensos limites apontados aos estudos com famílias homoparentais relaciona-se com o tamanho reduzido das amostras estudadas. Um estudo com “apenas” trinta ou quarenta pessoas não seria idóneo porque não é representativo. Confunde-se representatividade com rigor e vai-se até mais longe, considerando-se que o conhecimento científico das experiências de algumas dezenas de pessoas sujeitas a discriminação não é merecedor de atenção.

Ora, um dos motivos para a invisibilidade das famílias homoparentais e para o difícil acesso às mesmas é, precisamente, o preconceito fomentado por este tipo de argumentação. Exigir amostras representativas de uma população minoritária e discriminada enquanto se contribui ativamente para a discriminação é, no mínimo, perverso. Mais ainda, salientar apenas as limitações dos estudos que se debruçaram sobre a homoparentalidade, como se se estivesse a desmascarar uma fraude, é uma manobra retórica. Qualquer licenciado em ciências exatas ou sociais e humanas sabe que a última secção de um artigo científico se chama habitualmente ‘limitações e direções futuras’.

O reconhecimento das suas próprias limitações é a marca da ciência e, por isso, uma das partes mais importante de um estudo científico. É expectável que esta ética possa causar estranheza a quem não está familiarizado com a investigação. O consenso científico baseia-se na convergência dos resultados de estudos que assumem as suas limitações. Inverter esta lógica, apontando um dedo inquisitório às limitações de um estudo ad-hoc é perverter a lógica da ciência em favor de um discurso demagógico.

É compreensível que o cidadão comum não conheça os trâmites processuais da ciência tornando-se, assim, presa fácil dos argumentos acima exemplificados. Não é compreensível que estes argumentos emanem de pessoas que, pela sua formação científica, teriam obrigação de os conhecer. Se aos primeiros é com prazer e sentido de dever que o explico, aos segundos é com constrangimento. 

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