Dentro de outro tempo

E se Billie Holiday tivesse nascido branca? I’m a Dreamer, possivelmente o menos enviesado de todos os álbuns da cantora do Colorado, parece uma aprumada defesa de doutoramento dessa mesma tese destinada a ser aprovada com distinção e louvor. Aquilo que em tempos houve de folk facção freak na música de Foster, caldo psicadélico bem fervido para derramar sobre canções com pendor aéreo, ou de muito pouco convencionais interpretações das Lieder de Schubert e Brahms, foi agora totalmente apagado. I’m a Dreamer é uma viagem total ao passado, um álbum repleto de canções country-folk-blues a que foi aplicado um spray anti-pó, em que manda o piano e as guitarras são convidadas a deixar a electricidade no momento em que limpam as botas encardidas no tapete da entrada. O jazz, ragtime desacelerado (oh quanta beleza no piano ascendente-descendente de This is where the dreams head, Maude), chega de Nova Orleães mas é gravado em Nashville. E isto diz quase tudo.

Josephine Foster faz pensar naquelas série televisivas dos anos 80, com ficção científica em pano de fundo, quando a sina de uma personagem era acordar todos os dias num diferente tempo histórico até cumprir um papel de que tinha de descobrir pelo caminho, continuando a penar de episódio em episódio até alcançar uma qualquer redenção que a devolvesse ao seu pequenino dia-a-dia. Foster sai de cada universo a que se dedica como se o tivesse habitado desde sempre, como se conceitos aparentemente tão disparatados como cantar Schubert e Brahms com uma voz celestial e sujá-los com o tom telúrico e lamacento de um acompanhamento blues e folk fossem, afinal, a coisa mais natural deste mundo.

O dom de Josephine Foster é essa fachada de simplicidade, aumentada por uma voz tão doce e bela que manda todos os rodriguinhos às urtigas. E I’m a Dreamer é bem capaz de ser o seu álbum mais simples e belo. Ou não tivéssemos chamado à baila Billie Holiday. Nos píncaros, tudo parece existir como impossível de ser de outra forma. E como se não implicasse construção alguma, apenas projectasse o ambiente em que a música se viu nascida. 

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