ONU desconvida Irão e Genebra II vai mesmo acontecer

Peritos confirmam “provas claras” do assassínio de 11 mil detidos na Síria. Assad admite candidatar-se à sua própria sucessão.

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Bombardeamentos no regime na cidade de Homs Thaer Al Khalidiya/Reuters

O dia foi dedicado ao Irão e, afinal, o Irão será mesmo o grande ausente da conferência conhecida como Genebra II, o plano norte-americano e russo para tentar iniciar o fim da loucura na Síria e obrigar regime e oposição a conversarem.

Entre domingo e segunda-feira à noite tornou-se impossível perceber quem é que ia apanhar aviões a caminho da Suíça e quem ficaria em casa. Tudo porque o secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, decidiu convidar o Irão e o Irão decidiu aceitar. Estados Unidos e oposição síria indignaram-se e a Coligação Nacional Síria (CNS), principal grupo de opositores no exílio, que aceitou enviar uma delegação, garantiu que não iria se o Irão estivesse representado.

Já não vai estar. Ban Ki-moon retirou o convite e a conferência vai mesmo acontecer, já a partir de quarta-feira. Um encontro para o qual nunca houve grandes expectativas: o regime vai obrigado pela Rússia e só aceitou estar presente quando percebeu que isso o legitimaria; a oposição, apenas parte dela, só aceitou ir sob intensa pressão dos EUA, da Turquia e dos seus aliados árabes (a própria CNS partiu-se ao meio na discussão).

Opositores sírios e Washington, mas também Londres, Paris e Riad, consideram inaceitável a presença iraniana nas actuais condições. Só estarão na conferência países que subscrevem o comunicado saído do encontro de 2012, a primeira Genebra, onde se diz que deverá ser criado um governo transitório.

Ban explicou que só fez o convite porque o ministro dos Negócios Estrangeiros iraniano, Mohammad Javad Zarif, lhe garantiu que “o Irão compreende que a base das negociações é a concretização do comunicado de Genebra”. Diferentes responsáveis iranianos ajudaram à confusão, repetindo ao longo do dia que o convite não implicava a aceitação de pré-condições e explicando que um governo de transição não faz sentido por não respeitar a opinião da população síria.

Face ao caos, Ban começou por “apelar a todos para terem em mente, acima de tudo, as necessidades do povo sírio”. A Rússia defendeu que “não assegurar que todos os que podem influenciar directamente a situação estão presentes seria um erro imperdoável”.

Antes do anúncio final, Ban já tinha feito saber que estava “profundamente desapontado com as declarações iranianas”. Comentou também a “reacção desapontante de alguns participantes”.

As regras originais do jogo
Ban ficou descontente com a oposição, a oposição ficou descontente com Ban. Os EUA também. O secretário de Estado, John Kerry, telefonou a Ban reiterando que o Irão nunca poderia estar presente sem aceitar as regras originais do jogo, disse ao Washington Post um responsável da Administração.

Genebra II foi negociada por americanos e russos mas a organização oficial cabe à ONU. Quanto às regras originais do jogo, nem a Rússia nem o regime de Bashar al-Assad as aceitam. E ninguém, para além da oposição síria, questiona a sua presença na Suíça.

O problema — ou um dos problemas — é que as regras iniciais do jogo, como lhes chama o Washington Post, já não passavam de declarações de intenções, palavras que poucos esperam ver confirmadas na conferência. A oposição insiste que é para isso que vai, para negociar um governo de transição que implica a saída de cena de Assad, mas o regime deixou claro que não vai negociar nenhuma transferência de poder.

Se isso já não fosse claro para todos, Assad deu uma entrevista à AFP onde até admite recandidatar-se à presidência nas eleições previstas para este ano: “Nada impede que eu seja candidato e, se a opinião pública o desejar, não hesitarei um segundo”.

O texto assinado em 2012 por todos os membros do Conselho de Segurança é suficientemente ambíguo — só assim foi aprovado por russos e chineses. Sem nunca referir o abandono de Assad, diz que será formado um governo de transição “que pode incluir membros do actual executivo e da oposição na base de um consenso mútuo” e que este vai nomear “um interlocutor para trabalhar num plano de transição”.

Os objectivos dos participantes sempre foram irreconciliáveis, a questão do Irão só tornou isso mais evidente.

Na entrevista à AFP, Assad também assegurou que as suas forças não cometeram quaisquer massacres. “O Estado sírio sempre defendeu os civis”, afirmou. “As sequências-vídeo e as fotografias confirmam que são os terroristas que cometem massacres. Não há nenhum documento que prove que o Governo cometeu nenhum desde o início da crise.”

Torturados e executados
Estas afirmações já não eram verdade quando Assad as fez — vários relatórios da ONU enumeram crimes de guerra ordenados por altos responsáveis do regime —, mas estavam prestes a ser uma vez mais desmentidas. Segundo três experientes procuradores, novas provas “documentam assassínios a uma escala industrial”. As provas estão num relatório encomendado pelo Qatar e foi um desertor da polícia que as fez sair da Síria e as passou ao Movimento Nacional Sírio, um grupo da oposição apoiado por este Estado do Golfo.

O desertor era um fotógrafo da polícia militar. Peritos forenses autenticaram amostras de 50 mil imagens digitais que correspondem a cerca de 11 mil vítimas. De acordo com oGuardian, que teve acesso ao relatório, há corpos com sinais de tortura; alguns sem olhos, outros com marcas de estrangulamento ou electrocução.

“Agora, temos provas directas do que estava a acontecer às pessoas que desapareciam. Estas são as primeiras provas do que aconteceu a pelo menos 11 mil seres humanos, torturados e executados”, diz ao diário David Crane, que acusou o Presidente Charles Taylor da Libéria no tribunal da Serra Leoa e é um dos autores do relatório.

"Temos fotografias, com números e documentos com os mesmos números — documentos oficiais do Governo. Temos a pessoa que tirou as fotografias", enumera. “Isto é espantoso. É exactamente o tipo de prova que um procurador espera e quer ter.”

Dificilmente de Genebra II sairá um governo de transição. Na Síria, a violência que já fez mais de 13.000 mortos continua, com bombardeamentos permanentes em Alepo (165 mortos desde domingo, segundo os activistas dos Comités de Coordenação Locais) e atentados na fronteira com a Turquia (16 mortos na segunda-feira). Talvez o encontro permita negociar um cessar-fogo nalguma região, o acesso de ajuda a quem dela precisa ou a entrada de monitores independentes nas prisões sírias.
 
 
 

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